outubro 21, 2005

A IV Edição do Escritor Famoso

... só vai ter início a 2 de Novembro mas já tem Patrocinador! Os três melhores textos vão receber Numa Avenida de Merda de Ivar Corceiro.

outubro 17, 2005

Pó de ser

O meu signo da semana passada começava assim: "Possibilidade de encetar novos caminhos; alguns assuntos e problemas serão erradicados da sua vida dando campo a novas perspectivas".

As previsões eram tão animadoras que me fizeram lançar na semana com o maior dos optimismos. Na expectativa de um tempo alegremente incerto, e apesar da poeira que tinha assentado durante a noite, levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância, à procura de inspiração para os novos projectos que a promissora semana esperava de mim. Durante a caminhada começou a chover. Mesmo tendo um pó desgraçado à chuva, aguentei os instintos e percebi que era um sinal dos céus. Deixei a casa dos espirros e voltei à pressa para Lisboa pensando que se a chuva me livrasse do pó eu ainda tinha uma possibilidade de ser o escritor famoso.

Passei por Fátima onde deixei uma vela das caras e comprei uma mão de cera onde consegui encaixar, com alguma dificuldade, diga-se, a minha MontBlank com que assino as teses e os cheques. Aproveitei para comprar também um terço para pendurar no espelho retrovisor, junto ao DVD virgem que uso para iludir os radares da polícia, porque desde que deixei de ter seguro contra todos os riscos tenho andado mais preocupado com os loucos que andam por aí ao volante.

Cheguei a Lisboa ainda a tempo de votar mas tive alguns problemas. O presidente da assembleia recusou a minha permanência naquele local com a minha mãozinha de cera, pois podia ser entendida como um símbolo partidário e estar eu, por isso, sujeito a uma coima. Pus a mão no carro e tive que votar com uma Bic já em adiantado estado de decomposição. Uma lástima. Com uma esferográfica reles daquelas eu não poderia votar dignamente no meu partido e por isso votei noutro.

Ao chegar a casa a noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a televisão. Os computadores do estado tinham avariado e os jornalistas deram os resultados de há quatro anos para posteriormente se poderem retratar pelo lapso. Mas não foi preciso.

Aborrecido por estar a ver um programa repetido fui escrever uma carta à Insónia. As coisas andavam mal há muito tempo mas o meu signo dizia: "É altura de colocar um ponto final em relações afectivas que não lhe trazem estabilidade, apenas com o coração livre poderá almejar por melhores dias". Imitei o tom da carta à Sandra que tinha usado com sucesso há uns anos para me despedir da dita. Custou-me um bocadinho porque ao fim de seis meses de namoro posso dizer que já estava numa espécie de prólogo ao coito. É o que se chama desperdiçar um investimento. Mas o meu signo era muito claro.

Na manhã seguinte cheguei cedo ao trabalho. "Alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui" era a password da semana para entrar no refeitório e conseguir ter acesso à máquina de café. Até a menina Graciete sentiu o meu ar triunfal pois durante a manhã mais não fiz que ostentar a minha pose de bafejado pela fortuna dos céus e da conjugação dos planetas. No segundo café da manhã queimei-me. O dedo não arde, apenas dói. A Graciete tira outro café e pergunta-me o que me traz tão bem disposto. Falo-lhe do meu signo que diz: "não tenha medo do futuro." Ela fica de facto interessada. A vida é bela. As coisas estão mesmo a mudar.

À tarde falei com o Profírio, um colega meu que é primo do famoso escritor Jorge Rebelo Tinto, e perguntei-lhe qual era a distância de Lisboa a Aveiro. Disse-me que era a mesma que de Aveiro a Lisboa. Também me informou que de Lisboa a Aveiro demorava quase o mesmo que de Aveiro a Lisboa. Fiquei contente porque isto já eram dados importantes para por em acção o meu plano.

Na terça-feira a Graciete trazia um perfume novo. Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera do balcão onde alinhava as chávenas acabadas de lavar. Talvez por isso quando o patrão me chamou e me perguntou porque não estavam ainda acabados os documentos da qualidade que me tinha pedido eu lhe tenha respondido enigmaticamente: Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Deu um urro muito estranho, mesmo para uma pessoa como ele, e eu tive que ir tomar outro café para desanuviar. Para meter conversa disse à Graciete et in Arcadia ego e ela ficou a olhar para mim com um ar semelhante ao do patrão o que me deixou preocupado com as consequências inesperadas da inclusão da literariedade nos assuntos do dia a dia.

É aborrecido dizê-lo mas no dia seguinte não consegui evitar pensar enquanto acordava com uma renovada dificuldade: mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Pensei como é que podia evitar ir para o trabalho. Tinha cerca de setecentos papéis, quase todos iguais, para olhar com a máxima atenção antes de seguirem para os arquivos que guardavam a esplendorosa qualidade do nosso fabrico. Resolvi arriscar. Pus-me a debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. O resultado final seria o mesmo. Só por muito azar alguém alguma vez haveria de olhar para aqueles papéis. Uma improvável auditoria. E havia mesmo assim a hipótese de o auditor estar com o mesmo tédio que eu e olhar com interesse para os papéis sem de facto ver nada, acenando gravemente a cabeça em sinal de assentimento. A qualidade. A qualidade. Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita esta cedência da minha escrita à desonestidade.

Há momentos em que paramos. Subitamente. Desta vez foi por falta de gasolina. Cheio de pressa passei a área de serviço de Leiria com o ponteiro encostado mas pensando que ainda dava para mais quarenta quilómetros. Qual nada. Poucos quilómetros depois parei.

O dia tinha começado mal. Uma carta no correio dizia: reaviso. Prezado usuário, até a presente data não consta dos nossos registros o pagamento da sua conta/fatura do mês anterior. É mau de mais. Perseguição, pensei eu. Resolverei isso mais tarde. Tal como os problema com o patrão, com a Graciete, com o Profírio e com o auditor... Há sempre um tempo próprio para cada coisa.

Tinha pensado entrar no Navio dos Espelhos como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início. Mas o mundo inteiro estava contra mim. O Bush ao invadir o Iraque tinha feito disparar o preço do crude e com isso o preço de gasolina e com isso a minha ideia de poupar e com isso o depósito do meu carro sempre a ser atestado no limite.

Quando cheguei, às tantas da manhã, ouviam-se Les Voix du Silence. Percorri cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhei os livros caiados de pó de casa. Pensava: Seila quem é que votou em mim! Quem teria Paixão pelo meu texto? É terrível estarmos na ignorância do nosso destino.

Voltei para a casa do pó. O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.

Automedico-me com o signo para esta semana: "A conjuntura é muito favorável para os nativos deste signo a quem serão dadas novas oportunidades indutoras de êxito, é necessário que se empenhe e demonstre acima de tudo, força de vontade e convicção. Pode ser alvo de manifestações sentimentais surpreendentes e inesperadas, retribua todos os afectos sem reservas..."

O pó enche de novo as superfícies horizontais. O bico da caneta é uma bola de caliça azulada. Voltarei ao Navio dos Espelhos à procura de um livro que traga novos signos e que possa, ainda que por instantes, dar a impressão que há coisas que valem a pena. Como é estranho que haja entendimento mesmo que as letras sejam deixadas cair ao acaso e não seja certo que haja um lugar perfeitamente esférico onde regressar.


Lino Centelha


outubro 16, 2005

Ainda, o meu querido amigo, o Escritor Famoso...

Minha Muito Querida Rosário,

Nesta casa e nestas redondezas, há palavras coladas às paredes, ao chão, às pedras, às árvores, a tudo o que conheço como às minhas mãos. E colam-se também às memórias. Há quem se sinta acompanhado por anjos ou por espíritos. A mim, acompanham-me as palavras, sejam elas em que língua forem, maravilhosos entes invisíveis de ressonâncias difusas, ondeantes, que quase penso entrever pelo canto do olho ou no ondear das cortinas.

Talvez seja herança de minha mãe, que, ainda privilegiado na tepidez do seu ventre, me sussurrava poemas e histórias, as palavras fluindo na cadência directa das batidas do seu coração.

Calcorreio estas divisões vezes sem fim, e mesmo assim vou sempre descobrindo detalhes que a minha memória não lembra. Vê lá se isto se compreende! Dou comigo surpreendido pelo facto de o globo terrestre não reflectir o tom dos meus olhos depois das horas perdidas na infância a memorizar ao detalhe o contorno dos continentes! A idade talvez...Ou as palavras tomaram definitivamente conta de mim e estou a adquirir a natureza difusa delas.

“Nous avions cru que nous interrogions la peinture, c'est elle qui nous interroge. ", ouço Malraux dizer em surdina quando me sento na biblioteca. Sim, as palavras que consentiram em deixar-se domar pela minha pena sempre me devolveram os pontos de interrogação que coloquei à vida. Apraz-me o que penso ter aprendido, mesmo que pouco, mas o que me maravilha realmente é a sensação de mistério: mistério da vida, mistério dos sentimentos, mistério dos mundos desconhecidos de cada um. E pensar que quis tantas vezes ver a vida a preto e branco, simples, clara, taxativa. Nunca me agradaria tal vida....

Talvez seja para negar o destino que tanto escrevo. Talvez com tanto discurso apenas o venha confirmar. Isso já não me preocupa. Revisitado o passado por aquilo que hoje sou, tenho a sensação nítida de que o tempo é só este momento em que te escrevo, que todos os momentos passados e futuros estão condensados neste agora, como se juntasse em mim todos os momentos que sonhei ou vivi, todas as emoções que senti pelas pessoas que cruzaram o meu caminho, todos os mundos desconhecidos que entrevi nos olhares ou sorrisos de alguém. Enfim...

Minha querida, envio-te alguns olhares destas minhas andanças e aguardo a tua visita num destes dias (próximos, atrevo-me a insinuar). Talvez, quem sabe, não seja eu o único médium de palavras por aqui.

Um abraço terno

E.F.

(Maria, Estórias do Bicho de Seda)

outubro 15, 2005

O Escritor Famoso entrega os prémios


Pois acabo de deixar a Mariaheli e a Marquesa D'Aires depois de mais um bate-papo mesmo ao pé do Canal, e o Ivar Corceiro - mas esse eu vou encontrando por aqui, o meu querido Contrabaixo 4 the people, a Didas e o Japinho, e os murtoseiros (que nunca falham!) Januário e Joaquim, e o senhor dos 7 meses, e o George Cassiel que andou numa azáfama toda a noite - de quem nos despedimos e re-saudamos umas duas vezes - :), e do André do Devaneios sem sentido - que foi o fotógrafo da noite (obrigada André!) e, é claro, da Lilly Rose, que é lindíssima, deslumbrante e que ninguém jamais vai esquecer - ;)!

E assim, com poucos mas bons, passei uma noite bem divertida! Ah, e imaginem que o Manuel do Pé de Meia nos telefonou e que fiquei mesmo com vontade de o raptar um dia destes para outra noite de amena e tonta (sabe tão bem!) cavaqueira.

Mas hoje, para além de conversa, uvas, chocolate, o bolo de ananás da Joana e uns drinks, entregamos um livro aos vencedores das edições anteriores do Escritor Famoso. Ainda se lembram?

Ivar Corceiro, por Helena
Maria Heli, por O Escritor Famoso
Didas, por O Sorriso
Marquesa D'Aires, por Com Saudades de Helena


E agora vamos lá voltar ao III Concurso! O Júri votou nos 19 textos e o resultado a que chegou foi o seguinte:

Dois textos, para além de As Palavras da Memória de Palavras em Linha (já seleccionado pelos visitantes do blog), foram distinguidos com a Pena do Escritor Famoso (acabo de inventar o galardão). Esses textos são:


  • Agulhas Ferventes de George Cassiel - e o autor já teve o privilégio de receber o seu prémio



Estes dois textos tiveram as pontuações médias mais elevadas.

Mas acrescento que os textos de Prólogo, de Ivo Cação, de Ivar Corceiro, de Palavras em Linha, da Mushu e de Hipatia ficaram mesmo muito próximos. A qualquer um destes textos foi mesmo atribuida a nota máxima (10) por algum membro do júri. Tivemos alguns casos de fortes paixões individuais: os textos da J.P., da Fausta Paixão ou do Manuel (mfc), mas aí o júri esteve mais dividido, o que se reflectiu na pontuação final global. Todos concordamos que a qualidade dos textos foi bastante elevada, que o nível de escrita era muito bom, variando depois, apenas, a percepção de cada um sobre o grau de originalidade ou a eficácia na defesa da ideia central do texto, por parte de cada autor. Acrescentem-se a estes, outros factores ainda mais subjectivos, como o da empatia que se estabeleceu com o texto, ou a emoção que este nos transmitiu (comoção, surpresa, humor,...).

E assim, depois de agradecer MUITO a todos os participantes a mestria, o empenho e a simpatia que revelaram ao decidirem participar neste Concurso, e de agradecer também MUITO aos meus colegas "júris" o esforço e a atenção que dispensaram a esta iniciativa (e é tão bom partilhar estas tarefas e sentir que entraram nisto com o melhor dos espíritos!), dou por terminada a terceira edição do Concurso O Escritor Famoso!

A próxima edição vai ter início no dia 2 de Novembro mas ... vai ser diferente! :)

Fiquem agora com os três textos vencedores.

  • As Palavras da Memória, por Palavras em Linha
Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.


  • Agulhas Ferventes, por George Cassiel
"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. Tudo no mesmo sítio, sem novidade, muito despida, quase sem móveis, apenas o suficiente e muita coisa espalhada pelo chão em pequenos montes, livros em montes que já não cabem nas prateleiras, roupa em montes, sacos em montes, uma cordilheira de objectos que forma a minha casa, percorri-a como um caminhante nas montanhas, mas sem o sabor da descoberta, do desafio da exploração, para não perder a concentração no meu objecto último, a secretária sob a janela do quarto – um dos poucos móveis, tal como a cama. A escrivaninha com vista para as árvores, para o destino que as agita e para o vento que empurra os transeuntes no passeio lá muito ao longe, a escrivaninha onde destruía papéis num fervor incontrolável, uma ânsia esfomeada de folhas brancas que permaneciam virgens, e voltava para os montes, procurando livros, ou comida, para me acalmar, a cordilheira acalmava-me, mas não me distraía! Entrei como um actor entra em cena e fechei a porta. Encostei-me com a sensação de segurança, ali ninguém me poderia fazer mal, nem os sonhos, nem eu próprio, ou talvez só eu próprio, ali era eu comigo, era o habitat da minha existência perturbada, mas era apenas eu, e eu era o meu único inimigo, o meu inseparável assassino, a minha própria destruição que não se pode arrancar como quem arranha a pele – não sai, nós não saímos de nós mesmo, apenas nos transformamos; e não sabia como fazê-lo ou não queria acreditar que fosse da forma que a carta do dia anterior me sugerira; essa seria uma transformação radical, a mudança última de pele, o arranhar final da própria alma. Seria o assassino de mim mesmo. Mas ali, em casa, nada me poderia fazer mal, só eu próprio – era o que temia. Encostado, retomando o ritmo de respiração normal, mais calmo, reencontrando-me, deixei os dedos saborearem os veios da madeira envelhecida da porta, estava de regresso. Um banho, roupa lavada, um livro e um café – como o regresso à normalidade se pode resumir a coisas tão simples, a uma satisfação das necessidades físicas e das de conforto intelectual; automedicara-me: para afastar os pensamentos que me perturbavam desde o dia anterior, precisava sentir alguma normalidade, ainda que a mesma normalidade que me perseguia e que me deixava insatisfeito com a vida, mas precisava urgentemente dela, para que não me perdesse e não me deixasse levar num percurso sem regresso, para não afunilar a vida, uma "afunivida" era o que vivia; automedicara-me um banho, roupa lavada e café com um livro, isso
bastar-me-á,
disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior.
Bastar-me-á.
Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos
(…)
e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço,
(…)
chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos,
(…)"

  • A Casa dos Espirros, por Lino Centelha
Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.

Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.

Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.

Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.

Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.

O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.

Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.



[Lino Centelha e Palavras em Linha irão receber por Correio o respectivo prémio (agradeço que indiquem uma morada)]

outubro 14, 2005

O Escritor Famoso

O texto Máquina de Passar Tempo é de Rui Werneck de Capistrano

www.rwcapistrano.blog.uol.com.br

Curitiba - Paraná - Brasil

O Escritor Famoso

MÁQUINA DE PASSAR TEMPO

Não, você não leu direito o título. Ele não queria inventar a Máquina do Tempo. A perseguida por tantos e tantos cientistas sérios ou malucos. A-quela de ir e vir no tempo. De visitar a infância ou a velhice. O que ele que-ria mesmo era inventar a Máquina de Passar Tempo. Só isso. Por onde co-meçar? Que apetrechos usar? Melhor pensar. Sentou-se na melhor poltrona da casa e lá ficou. Zen. Quase nem. Sem porém. Cinco horas mais tarde, ainda estava pensando. Precisaria energia elétrica? Pneus de bicicleta, ace-lerador de partículas, cartas de baralho? Indeciso, pensava. Logo mais a-palpou a poltrona, o tecido macio, e resolveu começar por ela. Adaptou um volante de automóvel, um dial de rádio, motor de liquidificador. Daí em diante, foi fácil. Uma cúpula de abajur, dois garfos e uma faca, uma pá de ventilador, roldanas de persiana. Ficou dois dias indeciso entre uma ou cin-co cordas de violão. Decidiu por cinco. Pelos dez dias seguintes visitou fer-ros-velhos e catou tudo que parecia bom de usar. A família estranhou, os vizinhos balançaram a cabeça. Noite e dia ele pregava, serrava, soldava. Lógico que correu a notícia de que ele endoidara. Pirou. Está dando milho para bicicleta. Jogando queda de braço com toca-discos. Até que, num belo dia de chuva, ele abriu a casa para os curiosos.
— Vejam! Vejam! Inventei a Máquina de Passar Tempo!
Risos, muxoxos, bocas franzidas.
— Não acreditam, né? Pois, olhem: comecei a fabricá-la no dia 29 de novembro de 1993. O calendário mostra que hoje é 23 de novembro de 1994 e eu nem senti o tempo passar. Ele fez passar um ano inteiro! E o me-lhor vem agora: ela nem está pronta ainda! Pelos meus cálculos e estudos, acho que preciso de mais uns dez ou doze anos. Isso se eu achar todas as peças. Agora, pronta, pronta, funcionando sem nenhum barulhinho, leva ainda uns trinta anos. Aí, posso requerer patente. E revender. Mas isso, isso se eu não descobrir um jeito de modernizá-la, colocando peças tecnologi-camente mais avançadas, ecologicamente corretas. Bom, ao vão mais uns cinqüenta anos. Acreditam? Não? Esperam pra ver. Esperem pra ver...

É HOJE!



21H30 - LIVRARIA O NAVIO DE ESPELHOS
ENCONTRO DE BLOGGERS
"O ESCRITOR FAMOSO"

Rua 31 de Janeiro, 10 - Aveiro
tel: 234 420 197

Escrutínio (1a Fase)


Talvez andem a ler o último Ensaio de Saramago... porque neste escrutínio foi o voto em branco que prevaleceu! Tivemos muitas visitas com comentários sobre a extensão da obra a ler ou sobre a incapacidade para tomarem uma decisão dada a qualidade de todos os textos, mas votinhos mesmo, apenas 18! Não se faz, seus preguiçosos blogosféricos! #°§##^\[#]

Que essa míngua não desvalorize o texto que reuniu a preferência de 4 honrosos leitores, nem os três textos que somaram um par de votos, nem os outros oito diferentes textos que captaram 1 voto, e muito menos aqueles que nem foram nomeados... porque o júri ainda está a deliberar e, como sempre, é possível que tenha uma opinião ligeiramente diferente!

Não obstante, podem tomar conhecimento do ranking de preferências definido pelos 18 corajosos eleitores:



A decisão final do júri será comunicada mais logo na livraria que já conhecem. Vão estar presentes os vencedores das edições anteriores para receber o seu prémio e eu espero que os actuais concorrentes também possam comparecer. Palavras em Linha já tem garantida a oferta de um livro. Mas pode não ser a única...

Até logo!



Só hoje é que vi este logotipo feito pelo Ivar Corceiro. Gosto imenso!

outubro 11, 2005

Votações em curso no Divas & Contrabaixos


MRF

Chegou o momento das votações. As urnas estão abertas a partir deste momento e até às 24 horas do dia 13 de Outubro. Já conhecem as regras: todos podem votar, incluindo os autores dos textos (num outro texto que não o seu). Só deve ser indicado UM texto (eu sei que é difícil...) como o PREFERIDO. A nomeação desse texto deve ser feita nos comentários do Divas & Contrabaixos. Na vossa avaliação tenham em consideração se existe ligação entre o texto e o mote apresentado (mesmo que essa ligação não tenha que ser óbvia!). Se quiserem, apresentem as razões por que fizeram a vossa escolha.
Aos autores agradeço a generosidade implícita na resposta a este desafio e, como poderão comprovar, a qualidade elevada dos textos.

São 19 os autores/textos a concurso!

outubro 10, 2005

19. Um tempo alegremente incerto, por Carlos

Podia estar à espera de um barco que me levasse, a alma animada pelas coisas que se não conhecem e que nalgumas partidas se revelam intensas e felizes, antes de tudo ou alguma coisa se passar.

Poderia olhar em volta, as paredes e as pessoas, e ficar com pena de as deixar por algum tempo (um tempo alegremente incerto), olhar para as minhas coisas e pensar que vão ficar sozinhas por algum tempo (um tempo alegremente incerto).

Poderia descer até ao jardim que fica a bordejar o rio e pensar que haveria momentos, lá onde quer que estivesse, em que seria impossível apanhar pequenos pedaços de madeira e brincar com os cães. E teria essa nostalgia, que agora anteciparia, uma leve impressão no estômago, vacilando por um breve momento.

Poderia não dormir já três dias antes com a ansiedade, antecipando odores, paisagens e outros seres.

Mas não vou a lado algum, o caminho e a porta voltarão a ser os mesmos, antes ainda que seja visitado por um tempo alegremente incerto.

Carlos do Alameda dos Oceanos

18. (sem título), por mfc

A noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a árvore, de que apenas se perscrutava o recorte escuro contra o mais escuro do céu. Não ousei acender a lareira e virei costas à estante, que sempre foi um aconchego. Via apenas a árvore negra na minha frente. O frio húmido entrava pela janela, mas precisava de estar ali a contemplá-la. Já a tinha visto mil vezes, mas não assim apenas recortada. Estavamos imóveis os dois, fixos um no outro. Fomos companhia recíproca desde há muito, se bem que ela fosse uma irmã mais velha e me tivesse ensinado como estar na vida... Dizia-me muitas vezes: "Olha para mim!"
Era o que fazia agora, como que a querer que mais uma vez me desse uma indicação, mas continuava imóvel, sabendo apenas que ali estava, já que a via recortada no escuro. Ela também me via, mas talvez não fosse o momento de falarmos. Continuei a fixá-la.
Começou a clarear. Então o negro do seu tronco tornou-se castanho e as folhas, que pareciam pedaços de carvão, tornaram-se a pouco e pouco verdes.
Já não me podia ignorar. Abanou suavemente, cumprimentando-me. Com aquele abanar suave deu-me o conselho que tanto esperava. Sorri-lhe dizendo que tinha entendido...
Tinha que transigir, sem abandonar os meus princípios.
Sorri-lhe mais uma vez e os seus ramos curvaram-se, reverentes.
Agora podia ir deitar-me. Já sabia o que fazer.

17. Mestre, que p.. de vida, por Francisco del Mundo

Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Walter Herrman é uma delas! Este homem, com um H muito grande, tem 25 anos e é um basquetebolista argentino. É um atleta tremendo que tem provado a vitória na derrota e a derrota na vitória. Mas contemos a sua estória...Em Julho de 2003, estava ele em La Plata no estágio quando, ao ligar para casa, descobriu que a sua namorada tinha perdido a vida num acidente. Para quem já passou por isto, sabe que a dor (e impotência) é tão grande que se amaldiçoa a vida. Transtornado, virou a sua fúria para o quarto do hotel. Voou para a capital num avião fretado, e descobre que no mesmo acidente tinham morrido também a sua irmã e a sua mãe. A notícia foi tal que Herrman ficou anestesiado, fora da realidade.O povo argentino, dado a exaltações desportivas, acarinhou e apoiou o jogador de forma a ele reagir. Num gesto de transcendência voltou à sua equipa em Espanha e foi eleito como jogador mais valioso (MVP) da liga. Na temporada seguinte trocou de equipa mas continuou a jogar a grande nível. Exactamente um ano depois da tragédia, quis o destino que jogasse a final dos Campeonatos Sul-Americanos contra o Brasil. Herrman jogou e brilhou (sendo mais uma vez MVP), 365 dias «...após a morte das três mulheres mais importantes da minha vida.». A glória chegado...Sabes, mestre, gostava que a história acabasse aqui! Mas não... Depois do jogo, já no hotel, Herrman recebeu a notícia que o seu pai tinha sofrido um ataque cardíaco, um ano depois da morte na mulher e da filha. Foi um novo teste para Herrman, que o superou ganhando a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atenas. Que ironia, mestre... Depois de um ano digno de uma tragédia grega, ele bem que merece um momento no Olimpo! E tenho a certeza que, comum sorriso nos lábios e uma lágrima nos olhos, Herrman exclamou: "Que puta de vida!"...

Assim vai o mundo...
Francisco del Mundo

16. O Escritor Famoso e os elos do passado, por Caiacaina

Levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância. Voltei a olhar o baloiço e lentamente atravessei o jardim de todas as minhas recordações. Os meus passos ressoavam no saibro solto e por entre a folhagem da velha árvore, parecia-me ver os olhos de Helena a admirarem-me.
Em passos lentos dirigi-me à minha casa. Cruzei os arcos de pedra cansada pelos anos que seguravam as ogivas.
Entrei na sala e olhei os cadeirões forrados de tecido florido, onde minha mãe se sentava comigo, para conversas e às vezes reprimendas… Sentado naquele cadeirão à esquerda, perguntou-me minha mãe, com ar severo. o que havia estado a fazer com Helena, naquele dia em que nem percebi o quanto Helena significava…
Abri a janela. Olhei para fora e vi-me criança, de calções ainda, correndo para apanhar borboletas…
Atravessei o corredor e no meu quarto, apenas abri a janela, de onde vi a paisagem, que em nada mudou… Dei meia volta e fui sentar-me perto da varanda, com as vidraças abertas, respirando o ar fresco do arvoredo. Mas a imagem de uma Helena tão criança ainda, não deixava de saltitar na minha imaginação. Agora compreendo como sempre a amei… Helena! Helena!...Os olhos meigos e serenos de Helena, foram ao longo da minha vida, a doce companhia da minha filantropia.
Abri a última gaveta da estante de meu pai, onde minha mãe foi guardando os meus papéis, como costumava dizer, os velhos cadernos escolares e entre muitos desses papéis lá estavam uns quadradinhos de papel com desenhos de flores e o nome de Helena no meio…Depois da morte de meus pais, era a primeira vez que aqui estava, serenamente, para actualizar burocracias e para recordar a meninice que tantas saudades me deixava…Olhei de novo ao meu redor e tentei reviver todos os momentos, para me localizar nesse passado distante e idealizar como estaria Helena, que deixara de dar notícias desde tempos indeterminados…Passei horas e horas neste vai e vem, de divisão em divisão, e já à noitinha, o senhor Chico veio trazer-me uma sopa ainda a fumegar e um naco do bom chouriço de seu fabrico e umas fatias de pão, para aconchegar o estômago.Tagarela o bom velho Chico, que me conhecera miúdo, com poucos anos de diferença dele, pois que quando nasci a mãe dele trabalhava cá em casa e ele era muito criança…chegámos a chutar a bola nas traseiras, quando regressava da escola. Mas a tagarelice do bom Chico deu para me preencher as lacunas de memória e para me dar algumas novidades que desconhecia.Também tinha na mão um pacote de correspondência que havia junto, para me entregar, quando me voltasse a ver.Cartas! Uma infinidade delas, para meus pais. Publicidades e postais de amigos que haviam partido para o estrangeiro durante a minha ausência e de quem não ouvira mais nada… Mas! Surpresa, aquela carta pareceu-me estranha…de uma Helena Portier…para mim…Abri sofregamente, sem dar ouvidos ao Chico, que a sopa arrefecia, e comecei a ler. Helena! Minha doce Helena! A carta havia sido escrita há mais de três meses e participava o falecimento do marido, bem como a sua vinda à nossa terra, pois que voltava para expor as suas pinturas na capital.Beijei as faces do Chico, tisnadas pelo sol, e saltei, mesmo esquecendo que já me queixo muitas vezes de dores reumáticas… Helena ia voltar! E pelas datas, faltavam apenas dois dias para ter possibilidade de a rever… nem havia tempo de fazer projectos… mas ia voltar a ver Helena!

Caiacaina do Bis morgen

Resposta a fornecedor

Caro Werneck de Capistrano,

Em nome do Escritor Famoso veio pedir clemência. Como sabe as artes são muito mal pagas e estes seus amigos são uma espécie de reis...nus!
Por favor não nos tire o ar! ;)

MRF

O Escritor Famoso

Dez mil litros/dia - Werneck

Reaviso.
Prezado usuário, até a presente data
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Recomendamos sempre a leitura
das cláusulas contidas no seu contrato
onde, entre outras de igual importância,
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que, uma vez cumprido, evitará sanções administrativas
que podem causar graves danos ao usuário,
conforme já constatamos em situações semelhantes.
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está sujeita à multa – de acordo com decreto presidencial –
e, caso o pagamento não ocorra até o trigésimo dia
após o vencimento, ficará caracterizado
o desinteresse de sua parte em continuar recebendo
os dez mil litros de ar/dia a que tem direito
pelo decreto estadual nº 30.568
de 17 de dezembro de 2098.
A empresa enviará seus funcionários identificados
e procederá o desligamento dos instrumentos
utilizados para o fornecimento.
Não temos interesse no desligamento,
uma vez que este procedimento provoca tensão,
com aceleração involuntária da respiração
pelo consumo extra do coração sobrecarregado,
o que traz sérios problemas de gastos e saúde ao usuário
e transtornos ao nosso departamento jurídico.
Agradecemos sua atenção e, como
empresa fornecedora oficial de ar da cidade,
estamos prontos a esclarecer suas dúvidas
quanto aos novos racionamentos
previstos para os meses de maior demanda.
Lembrando que a economia e o bom uso do ar
são de suma importância para a cidade,
bem como o pagamento em dia evita
o corte em áreas de menor poder aquisitivo.
Outrossim, pedimos que desconsidere este reaviso
caso tenha efetuado o pagamento, mesmo com atraso.
E se, por algum motivo, o usuário deixou de respirar,
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15. Carta á Insónia, por Finúrias

Cinco minutos depois das 6, canta a noite sem sono. E mais uma noite ! Deambulo pela casa já de madrugada , uma insónia que tome conta de min . Certamente, quando só no silêncio próprio da noite , inconscientemente acabamos por pensar , e pensar , e pensar ...com ou sem sentido , o que gostaríamos de ter feito, e deixamo-nos cair no esquecimento da hora. É nestas alturas que sentimos a vontade de tudo agarrar, e recriar ...os castelos de criança, já esmagados pelo tempo , falar àqueles que o próprio tempo fez desencontrar, reencontrar o amigo imaginário que fazia companhia quando a mãe apagava a luz do quarto. O medo do escuro deixava de existir ! A menina do lado ,de quem gostava, com quem brincava, sim...bela companheira , e depois penso !!! Poderia lhe ter dado um beijo !!! (se calhar toda a gente já fez esta pergunta !)

Talvez tenha sido melhor assim, ou sido o destino que assim quisesse . Passado estes anos todos, é um pouco estranho tentar encontrar respostas , onde sequer as perguntas já não fazem sentido algum. A nostalgia pode ser saudosa com riso , saudosa com choro, pensando bem... é o que nos faz mover no dia-a-dia (ou não) ! Tudo faz sentido , e ao mesmo tempo deixa de o fazer, olhar para trás e arrepender daquilo que não se fez, não é resposta a nada , a não ser ao nosso ego .
E como a noite e o silêncio permite que eu veja as coisas de uma outra maneira ! (mas não será assim com todos nós ? )

Sento-me no sofá , leio mais um pouco, ligo a TV, e faço zapping, mais um cigarro , um copo de água , e a insónia ri-se como se de mais uma vitória tratasse...realmente, é uma vitória ! Pela varanda da sala, ouço ruidosamente o zumbido do reclame de néon e o piscar de luzes irritantes da loja de baixo, que me entram pelas persianas entreabertas. Levanto-me , pego numa maça, a única da fruteira, olho para o relógio, já é tarde, muito tarde, vou até à varanda . A chuva já se foi, a noite ficou amena, mais calma ,uma brisa serena com ecos me chama , é estranho ! Alguém com passadas largas passa do outro lado , cambaleando um pouco apressado, tentando se equilibrar , tenta se manter preso a uma linha traçada no chão pelo seu imaginário , para assim tentar se endireitar, mas o álcool não deixa. Perco-o de vista . Semáforo verde para os peões , uma carrinha em paragem brusca, por baixo da minha varanda, (lá pensou que conseguia passar a tempo...ou talvez tenha sido o cansaço a pregar partidas) . Enquanto espera pelo sinal verde, esboça um sorriso, e fala sozinho, (vá se lá saber em que pensaria), ao cair do sinal partiu acelerado, deixo de o ouvir lá longe, mas ainda pressinto as ténues luzes traseiras. Há vários minutos que nada acontece, a rua assim, é mais minha . Pequenas manchas no Céu parecem conter os traços de um rosto humano com várias feições ! Acabo o cigarro...volto para a sala...e reparo o mesmo de muitas outras noites...

Uma luz que se acende em frente ao meu prédio , o mesmo vulto de muitas noites , anda de um lado para o outro como se sentisse perdido, o mais certo é ser a tal insónia, a mesma que eu me debato. De dia mantém as persianas fechadas, à noite sobe-as , nunca percebi muito bem, se calhar vive de noite ! Nunca me cruzei com ele , estranho ! Só vejo esse vulto nas noites da minha insónia, estranho ! Ponderando bem...poderia ser a minha imagem reflectida no vidro da varanda !!! faz sentido...ou estou a ficar louco ?

Quanto tempo levará a passar a noite?
Talvez o mesmo de ontem !
Quantas marés terei de ondular
Para que ao meu " Porto " eu chegue .
Quantos desertos terei de atravessar
Entre tempestades de areia
E visões da minha imagem
Num Paraíso de ninfas...
Quantas mais insónias terei de suportar ?

O melhor é deitar-me e não pensar !
Para eu contar isto, é que conheço todas as horas de uma "noite de insónia" !

Finúrias do Ministério da Soltura

14. O coito, por prólogo

Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.

Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar.

Claro que desconfiava que a história estava mal contada. Habituara-me a que, tal como com o sexo, os adultos nos escondiam sempre algumas partes, suponho que com a pedagógica intenção de nos manter interessados em continuar vivos.

Entre as histórias mal contadas e a verticalidade da condição humana, a casa da infância ficou marcada no globo como o lugar em que tem que se olhar para cima para ver o céu.

É por isso que aqui volto quando necessito de alinhar de novo a bússola dos sentimentos. Nada explicável, eu sei. Apenas sensações, vibrações mentais que decorrem de comparar as memórias com os lugares, numa espécie de passatempo do tipo descubra as diferenças.

Os lugares são sempre outros. Aqui soube, entre outros, de Jesus Cristo e de D. Quixote. Não sei qual deles chegou primeiro. Não sei quem é o real que se tornou ficção nem quem é a personagem que se tornou concreta. Que mais faz? Que é a história senão essa capacidade de tirar à ficção os direitos de autor? Ou talvez o contrário...

O que me lembro tem pouco a ver com o que vejo. Os saltos que dava eram muito maiores que a altura da janela. Mas a janela era muito maior. A casa encolheu, os sons agora são menos silenciosos e os cães já não ladram.

Gosto de ter este lugar vertical de regresso. O ponto de partida que torna de novo a meta. O coito onde se volta no jogo das escondidas.


Prólogo

13. A casa dos espirros, por Lino Centelha

Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.

Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.

Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.

Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.

Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.

O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.

Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.


Lino Centelha

12. O Tempo, por Rui Gonçalves

Mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Porque "o tempo faz com que as coisas mudem", pensei eu nessa altura. Mas o passar do tempo apenas nos faz ficar com menos tempo. Tempo esse, que pretendemos que seja para mudar aquilo que não mudámos a seu tempo.
A verdade é que nunca acreditei na história do D. Sebastião, mas como todos aqui, acredito que haverá um tempo melhor que este. Um tempo em que terei tempo para fazer aquilo a que gosto de dedicar o meu tempo.
Para eu próprio ser fruto do meu tempo e quem sabe até ter algum tempo livre.
Mas o tempo não mudou nada. Se calhar "ainda não passou o tempo necessário", penso eu. "É preciso dar
tempo ao tempo". A verdade é que o tempo foi passando e apenas foi me dando uma precessão de lugares comuns.
O tempo é apenas tempo, porque como me diziam em miúdo, naquela ladainha, "o tempo perguntou ao tempo
quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem".
Ou seja, não faz mudar nada, para além do próprio tempo. E, já não tenho tempo para isso...
Afinal o que se passou neste tempo todo? Cada um gastou o tempo a fazer aquilo que o seu tempo
permitia. Alguns arranjaram um passatempo, outros olharam pela janela e viram o tempo a passar. Mataram
o tempo! "Porque quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro" ou, mesmo, para mudar o que quer que
seja.
Agora, voltou a chuva e o tempo frio. Mas a mudança não veio, como dizia aquela música festivaleira "o
vento mudou e ela não voltou". É do meu tempo? Não! É do tempo dos meus pais.
Eu não gosto do tempo. Não gosto das horas, dos minutos, dos segundos... O tempo apenas nos faz esquecer, não muda nada. Se calhar, não é o tempo, mas sou eu que tenho que mudar. Será que ainda vou a tempo? É que o tempo não volta para trás...
Mas, agora, é tempo de mudar!

11. (sem título), por Joaquim Pavão

Queimei-me! O dedo não arde, apenas dói. Volto a colocar o isqueiro no chão. Levanto-me? É isso! Estou a levantar-me. Tenho que agarrar-me. Tantos solavancos! Onde vou? Usa os olhos, usa os olhos. Só vejo manchas arrastadas em confusas direcções. Parei? Acho que parei, embora o corpo sinta ainda o passado no presente. Calmaria? Parece que parou. Olho e já estou na porta. Respirar, meu deus! Respirar? Inspiro, expiro, repetição. E mais repetição. Mão na maçaneta e rodo. Puxa, há que puxar e abriu. Respirar com repetição. Calma e um passo seguido de outro. Respiro entretanto. Parece-me bem, apreendido. Sorrio, parece um sorriso mas não o vejo. Será o vento ou tu que me fazes cócegas. Fecho os olhos. Escuro luminoso. Inspirar, expirar. Esqueço-me. Tosse. Inspira e expira. Calma. Repete. Sento-me num tronco. É o jardim? Viro-me e lá está a janela. Torno a virar e sei. É o jardim. Respira, repete. Arrepia-me de frio este calor. O dedo do pé mexe. Tenho-o que parar. Inspira, raios… Tosse. Respira, repete. Não posso distrair-me. Algo bate. Uma, duas, quatro. Parou. Tempo e mais tempo. Uma, quatro, cinco. Parou. Vem da porta. Rangeu e abriu. Ouvi claramente. Respira, repete. Passos. Um, dois, cinco, muitos. Volto-me. Está na janela! Vejo-o sem retribuição. Livro? Coloca-o na estante. Tira, coloca-o. Tira, coloca-o. Uma, duas, três, cinco… Tosse… Inspira, expira. Repete. Olho-o mais uma vez. Tenho retribuição. Desaparece da janela. Desapareceu. O meu dedo do pé mexe. Tenho-o que parar. A maçaneta está a rodar. Sinto frio por causa deste sol. Respira, repete. Aproxima-se. Já o vejo e ele retribui. Aponta o dedo? É feito de metal. Dedo estranho, dedo estranho. Nuvem, barulho. Estou molhado. Tenho ainda mais frio. Estou molhado e está sol. Deito água…. Tosse… Inspira, inspira… Tosse… Cuspo vermelho vivo… Tosse… Inspira… Inspira… Vou dormir agora. Bati com a cara? Mas é o buraco que me dói. Buraco? Inspira…

Diário de um Esquizofrénico


MRF

10. Xadrez, por Mushu

Sentou-se, cansado de tanto debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. Escreveu-as na leve esperança de que um dia tomassem vida, se organizassem e formassem algo com sentido.
Adormeceu.
Entrou pela porta de vidro que dava para o jardim, correu ao quarto para buscar as peças de xadrez, tencionando com elas jogar nos ladrilhos da entrada como era habitual.
- Mãeeeeeeee! Onde está o cavalo?
- O do xadrez? Vi-o passar aqui há pouco. Acho que foi para a rua.
Correu porta fora com o saco cheio das restantes peças do jogo.
"É sempre a mesma coisa! A mãe deixa-o sempre fugir. E agora como vou jogar sem cavalo?" Lá fora esperavam-no aquelas árvores que sempre o assustaram. Ainda bem que não havia vento. O vento a passar por entre os ramos sempre o tinha feito tremer. Pareciam-lhe as vozes dos fantasmas que a sua avó tantas vezes lhe falara. Sabia que andavam por ali e não queria arriscar encontrar-se com algum. Dirigiu-se rapidamente para o sítio preferido do seu cavalo. Era sempre a mesma coisa: cada vez que queria jogar xadrez nos ladrilhos da entrada o cavalo branco fugia e ia sempre para o mesmo sítio.
Lá estava ele, escondido debaixo das raízes enormes de uma velha árvore que espreitavam por fora da terra como que a gritar para dizer que ainda sobreviviam.
Acordou.
Olhou para a folha de papel, meia hora antes com letras ao acaso e que agora tinham dado as mãos para formar o início da história. Pegou na caneta e continuou com um sorriso nos lábios.

Mushu, do blog Ao sabor do Vento

outubro 09, 2005

9. A Saphira, por Ivo Cação

Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.

Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.

À distância, fica a dúvida se a felicidade da memória não é um duro texto de reclusão ornamentado por Saphira na sua proverbial bonomia e poderosa coragem. Lembro-me das palavras de Sartre e já não sei se são dele ou minhas, se Saphira as trouxe a mim e me repuxou o olhar estrábico para parecer um neto de doutor que passou a infância a ler.

É mentira. Na infância eu plantei uma nespereira. Enterrei o cinto do meu pai no quintal e enchi o pátio de guerras horríveis em que ganhavam sempre os bons. Saphira ao meu lado, olhos brilhantes, tentadores, sorriso eterno, incentivador, murmúrios nos lábios como o tal anjo-da-guarda que nunca cheguei a ver.

Agora já cá não estão na casa os coelhos e as galinhas que cantavam os ovos novos. A distância do quintal também já não é imensa e a pasta da escola, quando ainda era desejada, já não tem aquele cheiro a novo que parecia definir o outono.

Há as marcas do corpo. Na dobra da perna a cicatriz de um dardo metálico do portão que servia de baloiço; ao pé do joelho o furo de um pauzinho chinês que, afiado, serviu de punhal para desbravar a floresta das traseiras; e as falhas de cabelo, dos galos, quando a cabeça absorvia os choques.

E há as outras marcas. Marcas desviadas de qualquer propósito que não o de reservar para cada momento um encontro completo com Saphira. Não havia fadas, não havia gnomos, mas havia já heróis da televisão. Dois revólveres, um chapéu negro, um lenço da mãe ao pescoço e muitos fora-de-lei para matar e prender. Ainda não sabia mas era um Cartwright de pleno direito. Transportava-me a cavalo, alinhando o passo pelas marcas negras do chão, dançando com a elegância que via nas cerimónias iniciais das touradas.

Li, em tempos, ao lado de Saphira, que os lugares e as coisas guardam, nos interstícios aparentemente vazios dos átomos, todos os acontecimentos em que intervieram e que, se prestarmos a devida atenção, eles nos devolvem essas imagens acrescidas da ternura própria de quem é eterno. Não sei se é assim porque o tempo me tornou surdo às coisas demasiado pequenas e a visão passou a deliciar-se apenas com o que reconhece.

Mas não mudou tudo: Saphira ainda anda por aí.

Ivo Cação do Zumbido

8. Recuo, por Sísifo

Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita a voz de um tempo que me desafiou a perecer apenas com todas as fomes saciadas.

Aí, nesse pedaço pouco atento da gratidão, estarão também soletrados os passos que dei para deixar de sentir o que quer que fosse pela verdade.

Nada de perturbante.

Pedaços e mais pedaços é tudo o que se vai conseguindo sugerir como vida.


Regresso sempre aos mesmos lugares.

É isso mesmo o regresso: regressar onde já se regressou e voltar sempre.

Repetir com o mesmo método o mesmo erro até deixar de o ser.


Que é que faz de um lugar um lugar de regresso?

Que tem esta pedra cinzenta onde me sento e descanso que me faz voltar?

Que gravidade estranha há por aqui a fazer do meu movimento um elástico vai-vem?


Não, não me submeto.

Não quero ler de novo os mesmos livros nem beber de novo a mesma água.

Agora que o tempo me trouxe para um lugar impossível do universo, em que a mesma improbabilidade se refuta com qualquer gesto de segredo e de silêncio, vou permanecer no lugar que sou porque esse lugar sou eu.


Que estranha esta geografia.

Este globo a girar indiferente aos meus sonhos e à minha respiração.

Este sopro do vento que vem com o ímpeto próprio dos assassinos e submete as vontades ao capricho do acaso.


Talvez esteja escondido no fogo que já não crepita o tal anunciado milagre de conhecer.

Era só isso que eu queria: conhecer.

Quando saltava de pedra em pedra e procurava na folhagem um novo brilho capaz de surpresa, era apenas com essa ligeira intenção de perceber o que se passava, de ter um anúncio sensível do ser.


Sentir e compreender.

Só isso: sentir e compreender.


Sísifo

7. Jorge Rebelo Tinto - escritor famoso, por Fausta Paixão

Eu já devia estar avisada sobre a complexidade da mente artística. Não é que cada homem seja um artista ou contenha em si um artista, que as artes masculinas são assim umas coisas mais ligadas ao bricolage, coisas de encher garagens ou arrecadações com todas as inutilidades que já não cabem em casa. Mas dizia eu que devia estar avisada sobre as artes ditas nobres, uma vez que o pianista e o dançarino tinham arte inata e nem por isso deixaram intacta a minha alma apaixonada. Artifícios da vida! E se ela não é mais do que um rame-rame feito de rotinas pasmadas, de vez em quando lá cedemos à pitadinha de loucura que um artista traz e transmite ao cinzentinho dos dias.
E assim dizendo, ou assim pensando, deixei o Jorge Rebelo Tinto instalar-se na minha vida. Ele depois disse que fui eu que me instalei na vida dele, ou melhor, na casa dele, mas foi a solução para estarmos perto, que o Jorge não arredava pé da mansão de família cuja sala cheirava a cinza velha, a mofo e a couros furados pelo bicho entranhado há décadas. Dizia que precisava da minha companhia para lhe inspirar uns textos, mas hoje desconfio que a inspiração tinha outras fontes, pois de mim pouco mais queria do que umas refeições a horas certas e umas garrafas de V.Q.P.R.D. para alegrar o fumo das cigarrilhas. E falava de amor, o Jorge. Amor em versos emparelhados, sonetos de rima pobre, repetidas as palavras de paixão em acessos de euforia que lhe agudizavam o tom de voz.
Por amor apliquei cera nos ladrinhos, preto- branco, branco-preto, para que o cheiro a passado o encantasse nas noites de Outono, quando a chuva batia nas vidraças grandes e ele dizia inspirar o cheiro para se inspirar para as letras. Inspirava também eu, farta do tec-tec da máquina de escrever, pela noite dentro, para depois suspirar de pasmo e de abandono.
Por amor desfiz os fios das teias que aprisionavam as histórias às paredes, dizia ele; recuperei a armação do globo, já tombado sob o peso universal das suas escritas famosas e trouxe folhagem dos jardins para encher jarras de cristal antigo.
Foi também por amor que avancei a quantia necessária à edição de autor com que fez sair o último livro, entre choros de homem sensível e beija-mãos lambuzados de gratidão.
Depois disso não avancei mais nada. Nem por amor. A não ser a marcha-atrás que agora faço sempre que um homem me diz que gosta de palavras, a querer já meter-me na frente dos olhos textos adornados de poesia, olhando-me com ar de quem espera elogios e aprovação. Malditos escritores famosos!

F.P. do Não Compreendo os Homens

6. O Retiro do Escritor Famoso, por Luna

O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.
Valorizando mais o silêncio que o barulho. Os mil barulhos com que nos vamos habituando a preencherem o dia-a-dia.
Nesta quinta familiar, simples e modesta dos meus avós que ali nasceram e sempre viveram. Foi onde aprendi a crescer, onde brinquei com os meus primos e amigos, onde me habituei a acompanhar o meu avô na sua lide diária de vida no campo.
Tenho uma prima deficiente, que como ela costuma dizer, onde sempre fomos nós, sem rótulos nem vergonhas. Ensinados a lidar com os outros como iguais, lembro-me de andarmos a brincar ás escondidas com a Maria, a jogar à barra do lenço ela na sua cadeira de rodas, ao mata e a saltar ao eixo (aí a Maria era inevitavelmente o eixo, mas quanto nos divertíamos quando algum não conseguia ultrapassá-la e rebolávamos todos pelo chão fora).
Os serões eram passados á lareira nas noites frias, fazia-se de tudo um pouco, o cansaço pesava, mas eu ansiava pelas “histórias” do avô.
Sentado na sua poltrona e a minha avó na outra fazendo malha, lia com ele livros que me marcaram até hoje. Com ele ganhei o gosto pela leitura e escrita, acho que foi do cheiro que têm, que soltam ao serem manuseados, é um cheiro próprio, cheiro do tempo que por eles passou e passa.
O meu avô lia-me trechos que nada me diziam na altura, mas que hoje estão tão presentes e acabaram em referências para a minha identidade e formação!
A formação também a fiz nestes jardins que rodeiam a casa, no acordar e escancarar as janelas para o Mundo, que lá fora gritava por mim no seu silêncio, na sua paz que só aí sempre encontrei!
Foi aqui que me passaram todos os testemunhos e vivências para trilhar os caminhos da Vida, nem sempre fácil mas sempre para caminhar, com força e garra com que o faço.
Nos seus cheiros, nos seus recantos, no baloiço ao vento onde tive a minha primeira namorada, Helena!
É uma casa igual a tantas outras, para mim carregada de afectos, de memórias e recordações de uma infância feliz. Muitos dizem que ele, o meu retiro, é o principal responsável por ser o Escritor Famoso, para mim é responsável da minha existência como ser humano!

Luna do Loucura e Nata

outubro 08, 2005

5. (sem título), por J.P.

Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera. Arcada bruta nascida do sonho de mostrar poderio. Palpei de novo as raízes da infância, quando as azedas eram mais azedas, e o coração menos brando.
Que carranca séria, disseram-me. - Solta o riso que as flores agradecem!
Muda encaracolei-me no axadrezado hipnótico. O eco dos passos uma cortina de fumo.
Fiz girar só mais uma vez o globo ajeitado sobre a pianola. Sempre me agradou aquela rotação dessincronizada de chiar murmurante.
-Preciso de ar, com licença. A pressão no peito estalava-me nas têmporas. Saí sonâmbula para o jardim, que outrora me parecera maior.
– Tem cuidado que o candeeiro de ferro ainda continua pisco. Disse que sim com a cabeça, e avancei.
O laço do passado jamais seria recuperado.
Acocorada no lajedo, explodi em lágrimas, choro calado de quem se lembra vezes demais, solto agora em arquejos de raiva aliviada…

J.P., do blog Faz de Conta

4. alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui, por Ivar Corceiro

Durante a noite alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui, e eu sentei-me no parapeito da janela onde ainda estou. Nunca vi Vera passar o túnel. São tantas as vezes que um homem olha para o chão, penso agora, que não encontro resposta para a forma preocupada como a mobília me encara. É verdade que estou a olhar para o chão, e que me acalento na fraca pulsação da luz matinal. É verdade que talvez Vera ainda venha hoje. As árvores caminharam durante a noite aproximando-se da casa, e algumas estão deitadas lá fora à espera duma história de amor. As histórias de amor são sempre ridículas, penso agora, e não percebo porque geram tanta expectativa.
Nunca vi Vera passar o túnel. A árvore que está do lado de lá avisa-me sempre quando ela vem. Fecho as pálpebras e, no escuro que dela me aparta, o mundo aproveita para se mover, criando um lapso de tempo indefinível. Quando as reabro já ela está ao meu lado, sorrindo por me ver sempre de olhos fechados. Não suportaria vê-la aproximar-se sem saltar da janela e correr para ela, digo-lhe. Ela sorri de novo.
O mundo acabou de se mover, e Vera toca-me com a brandura dos pássaros que vão pousando nos ramos. Dá-me um saco de pão e diz que hoje não pago, que é oferta. É verdade que eu nunca comi o pão que ela me trouxe, todas as manhãs, durante anos. É verdade que nunca mais vou poder não o fazer. É verdade que amanhã estarei aqui e Vera será operária a muitos quilómetros daqui, e que depois de passar o túnel não a sentirei de novo a pousar em mim. Ela sorri e afasta-se. Fecho as pálpebras, e a íris que resguardo aproveita hoje para se rir de todas as pessoas que não se sentam nos parapeitos das janelas. As árvores que esperavam uma história de amor morreram, mas não faz mal: as histórias de amor são sempre ridículas.

Ivar Corceiro, do blog Bagaço Amarelo

outubro 07, 2005

3. Les Voix du Silence, por Hipatia

Percorreu cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhou os livros caiados de pó de casa antiga e com visitas retardadas pelos afazeres longe demais. Em cada espaço, uma memória salta-lhe ao caminho, um sorriso empoeirado de quando era tão mais fácil sorrir. Percorreu cada espaço, cada quarto. Sentou-se nas cadeiras do costume, como se nunca tivesse partido. Respirou os cheiros, cheiros familiares e antigos, de madeira verdadeira e linhos amarelados. Percorreu cada espaço, como quem percorre de mansinho uma vida inteira.


Naquela cadeira de braços florida, ao lado da lareira, tinha-se sentado, primeiro ao colo do avô, depois ao colo do pai, depois sozinho, para ler um qualquer livro; na gaveta daquele aparador escondeu primeiro rebuçados, depois cigarros roubados dos bolsos do pai, por sob os panos dos enxovais de cada mulher que habitara a casa. Podia traçar a história da família em linhos e algodões, em rendas e chitas, em bordados minuciosos ou em simples pontos-cruz.


Olhou os corredores onde tinha perfilado soldados de chumbo e carrinhos de lata. E encontrou o sítio certo onde o pião fizera a cicatriz. Viu marcas de dedadas perto dos lambris, impressões digitais da sua longínqua infância.


Mas eram os cheiros da estante dos livros que mais apelavam aos sentidos. Eram as encadernações antigas, as folhas de papel amarelado, o cosido das páginas que se abriam sorrateiras sempre nas mesmas velhas marcas. Naqueles livros estava tudo o que alguma vez soubera ou quisera aprender, estavam as diferentes vozes que partiram, estavam os silêncios confortáveis e as zangas, estava ele.


Preciosos livros onde abrira horizontes na infância e se escondera na adolescência. Livros com mil vidas sonhadas, desejos de futuro, miragens. Livros que lhe pertenciam, da mesma forma que ele lhes pertencia a eles. Livros de palavras silenciosas que gritavam ainda uma nova leitura, que não calavam o que precisava ser dito e o que doía dizer. Livros amarelos onde estava ele ainda aprisionado nas suas palavras silêncio, no vazio dos seus silêncios, no tanto que tinha sonhado e não tinha sabido ser. Livros enrugados, como ele enrugara também.


Naquela casa onde se escondiam e empoeiravam todas as suas memórias, ficava nu perante ele. Nela, era impossível fugir aos tantos de erros, às tantas de fugas, ao desconforto da rotina. Voltou a sentar-se na velha cadeira e rodeou-se das memórias que, mais uma vez, lhe tinham conduzido os passos à casa de onde antes, muito tempo antes, quisera fugir.


E reconheceu que estava, finalmente, no momento certo para voltar a casa, para voltar aos panos amarelados das suas avós, aos papéis desprezados do seu pai, à dor da perda da sua mãe.


Pegou da estante no Les Voix du Silence, de Malraux. E pensou como a sua vida tinha sido construída em silêncios e ausências. Pensou nos filhos distantes, que não conhecia nem o conheciam a ele. Pensou na solidão que o levava a percorrer, dia após dia, o caminho até à casa quase abandonada onde só viviam os seus fantasmas. E pensou nos netos…


Talvez estivesse na hora de lhes ler histórias, de os sentar no colo e lhes mostrar como é imaginar o futuro em palavras mudas. Talvez os conseguisse trazer para longe dos seus jogos, dos seus brinquedos, da televisão. Talvez afinal ainda fosse dele a possibilidade de construir a ponte que desse vida nova àquela casa, que a voltasse a aquecer de brincadeiras e gargalhadas. Talvez os linhos servissem ainda para enfeitar mesas e os armários se abrissem para que as porcelanas voltassem a respirar. Talvez houvesse novamente música no ar. E ruído. E esperança. E poeira de sapatos pequeninos depois das brincadeiras no jardim.


Talvez fosse ainda possível tirar o pó a tudo. Tirar o pó dele mesmo. Arejar as memórias.


Então, lesto, levantou-se da cadeira que já lhe abraçava o corpo confortavelmente, e dirigiu-se à janela que abriu de par em par. Agora… bem, agora só faltava deixar a família entrar na sua casa, esperando assim conseguir deixá-los reentrar na sua vida.



Hipatia, da
Voz em Fuga

... a minha sombra acompanha-vos!

Ass: o escritor famoso.

outubro 06, 2005

2. As palavras da memória, por Palavras em Linha

Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.

Palavras em linha

1. Agulhas ferventes, por George Cassiel

"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. Tudo no mesmo sítio, sem novidade, muito despida, quase sem móveis, apenas o suficiente e muita coisa espalhada pelo chão em pequenos montes, livros em montes que já não cabem nas prateleiras, roupa em montes, sacos em montes, uma cordilheira de objectos que forma a minha casa, percorri-a como um caminhante nas montanhas, mas sem o sabor da descoberta, do desafio da exploração, para não perder a concentração no meu objecto último, a secretária sob a janela do quarto – um dos poucos móveis, tal como a cama. A escrivaninha com vista para as árvores, para o destino que as agita e para o vento que empurra os transeuntes no passeio lá muito ao longe, a escrivaninha onde destruía papéis num fervor incontrolável, uma ânsia esfomeada de folhas brancas que permaneciam virgens, e voltava para os montes, procurando livros, ou comida, para me acalmar, a cordilheira acalmava-me, mas não me distraía! Entrei como um actor entra em cena e fechei a porta. Encostei-me com a sensação de segurança, ali ninguém me poderia fazer mal, nem os sonhos, nem eu próprio, ou talvez só eu próprio, ali era eu comigo, era o habitat da minha existência perturbada, mas era apenas eu, e eu era o meu único inimigo, o meu inseparável assassino, a minha própria destruição que não se pode arrancar como quem arranha a pele – não sai, nós não saímos de nós mesmo, apenas nos transformamos; e não sabia como fazê-lo ou não queria acreditar que fosse da forma que a carta do dia anterior me sugerira; essa seria uma transformação radical, a mudança última de pele, o arranhar final da própria alma. Seria o assassino de mim mesmo. Mas ali, em casa, nada me poderia fazer mal, só eu próprio – era o que temia. Encostado, retomando o ritmo de respiração normal, mais calmo, reencontrando-me, deixei os dedos saborearem os veios da madeira envelhecida da porta, estava de regresso. Um banho, roupa lavada, um livro e um café – como o regresso à normalidade se pode resumir a coisas tão simples, a uma satisfação das necessidades físicas e das de conforto intelectual; automedicara-me: para afastar os pensamentos que me perturbavam desde o dia anterior, precisava sentir alguma normalidade, ainda que a mesma normalidade que me perseguia e que me deixava insatisfeito com a vida, mas precisava urgentemente dela, para que não me perdesse e não me deixasse levar num percurso sem regresso, para não afunilar a vida, uma "afunivida" era o que vivia; automedicara-me um banho, roupa lavada e café com um livro, isso
bastar-me-á,
disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior.
Bastar-me-á.
Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos
(…)
e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço,
(…)
chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos,
(…)"

George Cassiel

outubro 04, 2005

III Concurso Escritor Famoso


Com as fotos que o Escritor Famoso me continua a enviar lembrei-me de vos propor uma nova edição de textos. Por favor, leiam e observem estas imagens com atenção.

Para além do prazer de escrever, desta vez existe uma razão adicional para participarem. É que no dia 14 de Outubro vamos realizar um encontro com o Escritor Famoso na livraria O Navio de Espelhos (que tem patrocinado os vários Concursos).

O acontecimento é tão importante que vem mesmo assinalado na Agenda Cultural da cidade de Aveiro!


Vocês conhecem as (des)regras do Concurso. Todos podem participar e não existem limites de páginas nem condicionamentos de género.

Nesta edição o mote é visual: todas as fotografias que aparecem neste post (e no anterior).

As fotos que vemos foram tiradas pelo Escritor na sua casa de família. Foi neste lugar que ele viveu e passou grande parte da sua infância e adolescência. Fiquei com a impressão de que actualmente a sente como se fosse um refúgio. A casa fica situada num lugar imaginário. Serão penalizados os textos que não aludam a nenhum elemento destas fotos.


A data limite de entrega dos textos é o dia 10 de Outubro (até às 24 horas). A votação aberta a todos os visitantes realizar-se-á do dia 11 ao dia 13 de Outubro. Mas caberá ao júri residente a palavra final. A grande novidade é que a apresentação do(s) vencedor(es) será feita ao vivo no Encontro que se vai realizar no dia 14 de Outubro e só depois será feita a comunicação no blog.

O prémio é um livro. Os vencedores das edições anteriores estarão presentes para receber o prémio devido (presenças já confirmadas).


Participem! Divulguem! E apareçam todos no dia 14 de Outubro, às 21:30, na livraria O Navio de Espelhos! O Escritor Famoso vai gostar de vos conhecer...