março 28, 2006

1. a morte de olhos abertos, de Ivar Corceiro

















Um corpo nu entardece na ponta nervosa de um cigarro. Linda mastiga sorrisos e depois diz-me que posso dormir com ela. Dormir mesmo, insiste, que sou o último desta noite, a não ser que apareça um taxista em fim de turno, e encosta-se para trás sobre o sórdido divã. Os seios abatem em godé e servem de cinzeiro a algumas cinzas esvoaçantes. São borboletas, penso antes de perguntar o que é que eu sou em último esta noite, que gostava de saber como ela chama aos clientes. Mastiga mais um sorriso, e diz que a morte de olhos abertos. Nós somos a morte de olhos abertos. Tenho um selo nas cuecas que paro de vestir. É desconfortável a pessoa com quem fizemos sexo chamar-nos morte quando ainda estamos a vestir as cuecas. Talvez não me apeteça dormir aqui.
Acabo o uísque que Linda me serviu quando cheguei. Serve-me sempre um uísque quando chego, talvez para que alguma doçura faça também amor connosco. Pouso o copo ao lado do cadáver duma maçã oxidada pela noite, e acabo de me vestir: as cuecas, depois umas calças frias, depois uma meia rota e uma boa, depois uma camisa e uns sapatos que resistem a calçar os pés. Enrolo ainda uma gravata que guardarei num dos bolsos do casaco. Sinto-me mais nu que Linda, assim vestido, e ela pergunta-me se não fico. Que não, minto, que tenho muita coisa para fazer. Linda abraça-se em posição fetal. Então que me vá embora já.
Menti-lhe e ela sabe que eu sei que ela sabe que lhe menti. Isso mesmo. Não tenho nada para fazer. Apesar de nunca lhe ter dito acho que também sabe que nidifico ainda num casamento cansado, num emprego cansado, num corpo cansado. Ela estimula tantos corpos como o meu que tem que saber. A morte é só uma. Só tem um corpo. Acho. O que Linda não sabe é que lhe dei todo o dinheiro que tinha como pagamento, que vivo do outro lado da cidade e não tenho maneira de apanhar um táxi, e que na verdade até precisava de dormir aqui. Visto o casaco e guardo a gravata no bolso. Tenho que ganhar tempo. Pergunto se quer que eu limpe a bacia com água que está no chão, aquela que serviu para ela me lavar o falo quando cheguei. Que não, expele. Que me vá embora. E vou. Sou uma morte serôdia, talvez.
Um homem pálido estaciona um táxi parcialmente sobre o passeio, na diagonal. Talvez esteja bêbado. Sai e manca até um quiosque no meio da avenida, no meio da noite, no meio duma enorme ausência. Que quer uma cola qualquer, e prolonga o olhar e as palavras sobre a empregada. Ele não está bêbado, está só triste, está só só. Eu aproximo-me e ele afasta-se, mas sem medo. Também sem expressão. Talvez sem nada, só uma cola de lata numa mão. Ela agradece, que a noite anda muito perigosa, e eu engulo a discordância. Anda, anda. Posso dar uma olhadela num jornal? Diz que sim. E eu leio que aumentou a violência com prostitutas de rua, que vários homens se acham o ideal próximo presidente do país. Fecho o jornal, que chega.
Daqui vejo a janela de Linda. A luz ainda está acesa e sua sombra ondula nas cortinas. Deixou a posição fetal, deixou-se nascer outra vez para o resto da noite. As minhas mãos agarram o jornal fechado, os meus olhos esvoaçam até ao corpo nu de Linda, as minhas pernas movimentam-se involuntariamente. Volto atrás, sou um cão fugido do dono. Subo as escadas que me elevam ao céu. Bato três vezes à porta com os nódulos da mão direita. Ela não abre e bato mais três vezes, com mais força. Agora abre. Parece-me mais velha do que há cinco minutos atrás. Vou trocar a água da bacia, diz ela enfastiando a voz. Que não, que afinal quero dormir ali. Só. Os olhos verdes de Linda socam-me, e é estranho, que uns olhos verdes deviam ser incapazes de socar alguém. Que entre, diz-me enfastiando mais a voz, mas que durma no sofá.
A sala é uma espécie de jardim estéril, Linda é uma espécie de magnólia seca, a noite é uma espécie de jardineira embriagada. Alguém bate de novo à porta três vezes, mas não sou eu. É o taxista, grita Linda, e não chega a abrir que ele força a entrada. Tem o cabelo rapado dos lados e uma lata de cola numa das mãos, tem uma pistola na outra. Só não trouxe palavras. Substituiu-as pelo ódio e angústia que traz no olhar. Aponta-me a arma e dispara. Vou morrendo devagar. Sou a morte de olhos abertos. Obrigado. Acho eu.

Baseado no filme "taxi driver", de Martin Scorsese [1976]. Por Ivar Corceiro.