julho 29, 2005

2. O Sorriso, de Didas

"Preciso de me lembrar das nossas tardes no baloiço do parque, do meu vestido vermelho de pintas brancas a esvoaçar e das nuvens lá em cima que se afastavam e aproximavam em movimentos sucessivos. Dos risos que a vertigem me provocava. De ti ao meu lado, silencioso, sorridente e feliz.
Preciso de me lembrar dos recados em forma de poema que me escrevias nas aulas. Ainda os tenho todos, mas é só na memória que os guardo sem pó. Também tenho todos os teus livros, alinhados na estante e todos os dias os abro para que eles não se desabituem de ser manuseados. Tu sempre me disseste que os livros têm que ser manuseados, que não podem ficar só para ali, perdidos na estante.
Preciso de me lembrar do teu sorriso. É importante não esquecer o teu sorriso.
Preciso de me lembrar do dia em que comprámos a nossa primeira mobília a prestações porque não tínhamos dinheiro para a pagar de uma vez, mas estávamos tão felizes! Era a mobília mais cara da loja e nós comprámo-la mesmo sem termos dinheiro. Lembro-me que me disseste - “Agora somos ricos” – e eu ri muito e estava nervosa porque não sabia como íamos pagar aquilo, mas estava feliz. Nesse dia tinha o meu vestido azul, que era novo, e tinha apanhado o cabelo com um elástico.
Preciso de me lembrar da boneca que me ofereceste no meu aniversário. Era exactamente meia-noite quando a tiraste do armário, toda amarrotada porque estava escondida debaixo das malas. Eu estava sentada no sofá e já tinha vestido a camisa de noite, era cor-de-rosa e tinha uma renda branca. Tinha calçadas aquelas meias grossas a que tu achavas sempre piada porque vestia uma camisa de algodão e meias grossas de lã. Ficava mal, eu sei. Mas eu tinha sempre os pés tão frios! Ainda hoje tenho! Compraste a boneca porque achaste que era parecida comigo e eu achei que não, mas não me importei, por causa do teu sorriso.
Preciso de me lembrar do dia em que me pediste para ficar contigo para sempre. Lembro-me de todas as palavras que trocámos e da ordem exacta delas. Lembro-me do teu sorriso. Lembro-me que estávamos sentados num banco do jardim e passou uma criança de mão dada com a mãe. Calámo-nos um bocadinho enquanto eles passavam, para que não nos ouvissem. Só depois é que te disse que sim. E tu sorriste.
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Preferia não me lembrar do dia em que te despediste de mim depois do almoço. Mas lembro. Com todos os pormenores que ainda hoje me fazem doer o peito por dentro. O médico diz que é sistema nervoso. Lembro-me que almoçámos peixe e eu me esqueci de pôr sal mais uma vez. Era péssima na cozinha. Tu voltaste a dizer – “Quando formos mesmo ricos contratamos uma cozinheira” – e riste. Eu fingia sempre que amuava quando dizias isso e dessa vez fingi também. Depois beijaste-me, disseste-me até logo e saíste. Eu levantei a mesa e pensei como era horrível aquela toalha bordada que a minha mãe nos tinha oferecido. Trinta e cinco minutos depois telefonaram-me do hospital e contaram-me do teu acidente. Eu não quis acreditar logo, porque acho que as pessoas nunca acreditam nessas coisas de imediato, demoram aqueles segundos em que o mundo pára. Depois, quando tudo recomeça, algo muito escuro e pesado se abate sobre elas, durante muitos anos. Foi o que aconteceu comigo, sabes?
Agora tenho este teu retrato em cima da mesinha de cabeceira para poder falar contigo todos os dias e recordar-te todas estas coisas, para que tu também não te esqueças e te lembres de mim quando eu chegar. Já não deve demorar muito porque cada vez estou mais fraca e doente. Mas não faz mal.
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Os teus netos brincam muito comigo. Riem-se por eu nunca saber onde pus as chaves, onde arrumei as compras, o que jantei ou que recado me deram para eles ao telefone. Dizem que a Avó Helena está a “bater mal”, é assim que eles dizem. Bater mal. Mas como posso eu perder tempo a lembrar-me dessas coisas se tenho outras muito mais importantes que não posso esquecer? O teu sorriso, por exemplo..."

Didas
Farinha Amparo