3. O homem que estava sempre a olhar para o mesmo.para nada.Em Marraquexe, de Mendes Ferreira
todas as manhãs abria a janela.estreita.como um lírio.só um braço cabia naquela fresta.um braço e os olhos.tristes.inquisidores.calmos.à espera de nada.à espera de uma coisa que era sempre o mesmo. o inesperado.o insólito.o desejo de um silêncio impartilhável.secreto.adoçado pelo chá de menta e pela temperatura acima dos quarenta graus.os olhos tardavam na cúpula das palmeiras esgalgadas como cabras famintas em busca de um verde inexistente.um gato. sempre o mesmo.vigiava aquela fresta onde quase sempre a ponta de um cigarro marcava o andamento das horas. que nunca mudavam. e no céu sem núvens o deserto espraiava-se em ondas rosadas e suaves. pela tarde o rumor dos pássaros adormecia o homem à espera de nada. as pedras rolavam na planície de lama seca por séculos de seca.
Irmira levantou a mesa. em silêncio.só.
com passos de areia. entrou no quarto forrado a laranjas.quadrado.pequeno.o céu estremeceu.um relâmpago.devagar despiu o vestido negro profundo.outro relâmpago.Alá estava
zangado.
Irmira deitou-se.a noite estava quente.como sempre. cheia de nada. cheia de um silêncio amargo. enorme como o deserto. e chamou por ele.pelo homem que espreitava o mesmo
em cada olhar de tesoura.inquisidor.macio.agora manso.agora mais perto do oásis. Hassan fechou a pequeníssima janela. não fosse Alá indiscreto e viesse intrometer-se no seu enorme nada.procurou Irmina.atravessou com ela grutas e desfiladeiros.beijos e nespereiras.facas e colares de prata.anéis de neve. dobrou o Atlas e adormeceu.finalmente. esmagado pela magnífica e serena incompreensão dos sinais rosados que desaguavam no rio. o mesmo rio que levava a lugar nenhum.
Irmira dormia.nua.magra. morena.acetinada.cobra obediente. Hassan acendeu um cigarro. o gato espreguiçou-se.e outra vez o mesmo olhar.o mesmo impenetrável silêncio.e sempre o cheiro
das laranjeiras .
............................................algures no deserto..............................................
Mendes Ferreira
Piano
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