15. Closer, o epílogo, de Claudia Sousa Dias
Os seus olhos, enormes e negros, destacam-se na pele branca, de um mate perfeito. Do rosto de Alice/Jane, emana uma expressão de melancolia, realçada pelo sorriso triste que lhe escapa dos lábios entreabertos, conferindo-lhe um je ne sais quoi de alheamento acentuado pela curvatura perfeita do arco das sobrancelhas.
Sentado no lugar em frente, o olhar azul-esverdeado do ex jornalista de obituários exprime dor e saudade. O sorriso é um esgar de amargura. Pequenas rídulas à volta dos olhos denunciam o cansaço acumulado ao mesmo tempo que, dois vincos de tristeza marcam os cantos da boca fina e de contornos perfeitos.
Os dois olhares cruzam-se examinam-se com precisão cirúrgica, sentados à mesa do café onde, seis anos antes, Alice Ayres exercia a função de waitress.
Toda a memória de emoções conflituosas explode, de repente, em ambos os cérebros: mágoa, saudade e uma estranha alegria semelhante àquela de quem chega a casa no pino do Inverno e encontra o conforto do calor proporcionado pela lareira acesa.
- Would you like to have a coffee?
O vício da Verdade contagia-os a ambos. Persegue-os. Obsessivamente. Noite e dia.
Olham-se intensamente. Uma vez mais. Tentando descobrir no rosto um do outro os sinais que lhe permitam descodificar o passado.
Ela sabe a verdade. Com as coordenadas de que dispõe não lhe é difícil deduzi-la.
Ele apenas consegue intuir um fragmento dessa mesma verdade, após tantos anos de ausência e reflexão. A sensação de que precisamente a verdade de que se julgou detentor, seis anos atrás, lhe escapa está omnipresente na mente do ex redactor de obituários. Contudo, é incapaz de distingui-la diante dos seus olhos, por mais óbvia que se lhe apresente.
Porque a sua percepção foi deturpada por uma mente vingadora.
E porque tinha em Anna o ideal de Mulher. E porque Anna defraudou esse ideal. E porque Alice/Jane jamais se comportaria com mais nobreza do que o seu ícone, a sua deusa – bela, sofisticada, independente, célebre. Anna, a Super-Mulher, a fotógrafa publicamente consagrada.
A emocional Alice, a dependente Alice, a waitress, a part-time stripper, teria fatalmente de ficar aquém.
O exame continua.
Onde foi a doce Alice Ayres/Jane Jones, agora super-modelo de uma conhecida marca de cosmética, buscar esta aura de poder e autoconfiança que, apesar da nostalgia, a impede de olhar Dan Wolf com a adoração de outrora. Um olhar firme, sem sombra de culpa, remorso ou qualquer tipo de emoção que sugira embaraço.
O que terá despoletado o cortar das amarras, naquela última noite num hotel de quinta categoria, com lençóis puídos e tapetes gastos?
Ela olha-o. Trespassa o lago cristalino dos seus olhos de água-marinha e vê: a dúvida, a insegurança e, paradoxalmente, a certeza de já não se sentir o dono da verdade.
Ela sabe que Larry não perdoa ter sido preterido duas vezes pelo mesmo homem: Dan, o redactor de obituários, escritor falhado que não tinha onde cair morto. Preterido pela esposa e pela ninfeta que então personificava as fantasias dos voyeurs solitários, vestida de prata, em cima de vertiginosos saltos agulha.
Ela sabe que o fogo do ciúme exige o gelo presente no gume da espada da Vingança…
Larry soube manipular o jogo da Verdade e da Mentira, usando apenas a parte da verdade que lhe convinha. Podando-a. Enviesando-a.
Contudo, o Tempo…
...o Tempo encarrega-se sempre de erodir a Mentira. Deixando à vista buracos fissuras…
E as marcas do Tempo reflectem-se nos olhos do jornalista.
E na mente.
Dan, entretanto, apercebeu-se que há peças que não encaixam.
O que despoletou a mudança radical de atitude, da sempre meiga Alice, naquela noite, no espaço de uma fracção de segundo? Raiva, revolta, indignação: “Há um minuto atrás estava disposta a ficar contigo para sempre…”
E qual o motivo de uma tão grande segurança face a alguém a quem supostamente teria traído?
Os olhos de seda negra, nocturnos e límpidos, julgam-no, como uma Némesis decidida a reequilibrar os pratos da balança…
Cláudia de Sousa Dias
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