abril 04, 2006

9. Toda a infância cabe numa caixa enferrujada, por Elipse



Inspirei-me numa cena ou numa ideia colhida no filme
"Le fabuleux destin d'Amélie Poulain".
Sei que é um filme que dá para mil e uma abordagens mas resolvi pegar na

caixinha das memórias...





Nesse dia tinha sonhado com o pai. Dir-se-ia que andava enleada nos caminhos da reconciliação com as memórias. Ela ou a parte de si que se escondia da racionalidade.
Foi depois do sonho que sentiu desejo de voltar à casa antiga. Vestiu-se de roupas novas e recuou no tempo. Paradoxo certeiro mas eficaz nas intenções porque foi na estação do comboio que o passado começou, enquanto o cheiro das travessas da linha se alojava no sentir antigo, quase até ao silvo da locomotiva e à “pouca-terra” anunciada ao longe. A viagem deu-lhe tempo para desejar ter pressa e por isso empurrou com força a porta, depois de ter estado presa ao brilho que o sol reflectia nos vidros. Ofuscada, talvez, ou à procura da paz que lhe guiasse os passos, frente à entrada.
Estava escuro e cheirava a mofo. Lembrava-se agora que tinha prometido uma limpeza aos móveis e às paredes, mas já não sabia há quanto tempo. O que sabia era de um cheiro próprio dali, um cheiro que vinha do lado de dentro. Todas as casas têm um lado de dentro mas ela sempre lhe tinha virado as costas. E foi nessa posição que fotografou as nuvens com a imaginação, vezes sem conta, prometendo a si própria que havia de seguir com elas. Cumpriu a promessa, num dia de céu carregado, antes de desabar o temporal. Ou foi por isso que ele desabou.
Agora, porém, virada para a entrada, conseguia ver o caminho a vir na sua direcção. Era curiosa a percepção de um simples exercício a inverter a perspectiva das coisas por explicar.
Entrou no quarto e percorreu devagarinho a familiaridade do espaço, enchendo as narinas de infância. Abriu depois as portadas, devagar, e olhou para o sítio onde sabia estar pousada a caixinha. Sentou-se na cama e pô-la no colo. E assim ficou.
Antecipou a primeira recordação. Sabia que a fotografia lhe iria mostrar o vestido branco de saia muito rodada, saltitante dentro daquele momento que o pai captou num dia de festa.
“Ela gosta de andar aos saltinhos pela casa e de furar os bolos quando saem do forno. E não se queima. Mas não gosta de ajudar a mãe nem de arrumar os brinquedos depois de estar uma tarde inteira a imaginar personagens”. Era assim que o pai dizia às visitas.
Contudo ela sabia que gostava de muito mais coisas.
Gostava de soprar serpentinas para as ver soltarem-se, livres; de encostar o dedo com cola à madeira ou às capas dos livros para sentir a proximidade das coisas; de ver a pedra a fazer ricochete nas águas do charco e sorrir da irreverência de um objecto pesado a soltar-se em voo. De colocar no colo uma pilha de livros para começar a saborear o primeiro, sobre o cheiro das folhas dos outros. E de deixar as suas personagens nos lugares das histórias, não fosse perder-se a vida que lhes criara.
Abriu a caixa. Olhou os objectos um por um e levou o búzio ao ouvido. “Pai, deita-te nas ondas e pousa-me nas tuas costas. Faz-me sentir que estou a nadar, que as águas são transparentes e eu hei-de dar-te amor pela vida fora”.
Depois o boneco de barro que tinha enfeitado os presépios, ano após ano. Tantas vezes brincara com ele deitando-o nas palhinhas para o proteger do mal. E tanta era a solidão herdada que tinha de olhar as caras dos outros no escuro do cinema; e os abraços dos outros dentro dos carros, ao sol-posto; ou andar pelas ruas cheias de gente, ao domingo, para lhes ouvir as vozes. E sentia-se quase como a figura feminina de Renoir – estava no centro mas a ver de fora. Por isso via como o passar do tempo a tinha feito recusar o enleio do todo e como as horas passadas à mesa eram sempre as mais penosas por estarem juntos e em família. “Jesus faz com que eles se dêem bem e não discutam”.
Pegou na conta de vidro verde e sentiu, através dela, o pêlo branco do gatinho de corda trazido de um país frio. E na caixinha de baton, a cheirar a maquilhagem velha, junto dos brincos de pendentes pretos com lantejoulas a lembrar a tia. Tomara-lhe a entoação e dizia como ela, enquanto fazia falar as personagens de plástico sem cabelo “Nunca existe a felicidade completa”.
Pegou também no lenço roxo que a mãe usava e cheirou-o de novo. E sentiu nele a alegria dos fins de tarde, quando a mãe inventava esconderijos pela casa à espera que ela a descobrisse; riam-se as duas, riam-se tanto… até que a mãe dizia “O que será que está para acontecer?” Depois o pai chegava e não havia mais brincadeira.
Foi nessa altura que deu consigo a limpar as lágrimas ao lenço roxo dos dias frios.

Depois fechou tudo, caixa, janelas, memórias e por fim a porta da entrada. E foi mais uma vez de costas para a casa que partiu, ao ritmo das nuvens.

Palavras em Linha