outubro 07, 2005

3. Les Voix du Silence, por Hipatia

Percorreu cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhou os livros caiados de pó de casa antiga e com visitas retardadas pelos afazeres longe demais. Em cada espaço, uma memória salta-lhe ao caminho, um sorriso empoeirado de quando era tão mais fácil sorrir. Percorreu cada espaço, cada quarto. Sentou-se nas cadeiras do costume, como se nunca tivesse partido. Respirou os cheiros, cheiros familiares e antigos, de madeira verdadeira e linhos amarelados. Percorreu cada espaço, como quem percorre de mansinho uma vida inteira.


Naquela cadeira de braços florida, ao lado da lareira, tinha-se sentado, primeiro ao colo do avô, depois ao colo do pai, depois sozinho, para ler um qualquer livro; na gaveta daquele aparador escondeu primeiro rebuçados, depois cigarros roubados dos bolsos do pai, por sob os panos dos enxovais de cada mulher que habitara a casa. Podia traçar a história da família em linhos e algodões, em rendas e chitas, em bordados minuciosos ou em simples pontos-cruz.


Olhou os corredores onde tinha perfilado soldados de chumbo e carrinhos de lata. E encontrou o sítio certo onde o pião fizera a cicatriz. Viu marcas de dedadas perto dos lambris, impressões digitais da sua longínqua infância.


Mas eram os cheiros da estante dos livros que mais apelavam aos sentidos. Eram as encadernações antigas, as folhas de papel amarelado, o cosido das páginas que se abriam sorrateiras sempre nas mesmas velhas marcas. Naqueles livros estava tudo o que alguma vez soubera ou quisera aprender, estavam as diferentes vozes que partiram, estavam os silêncios confortáveis e as zangas, estava ele.


Preciosos livros onde abrira horizontes na infância e se escondera na adolescência. Livros com mil vidas sonhadas, desejos de futuro, miragens. Livros que lhe pertenciam, da mesma forma que ele lhes pertencia a eles. Livros de palavras silenciosas que gritavam ainda uma nova leitura, que não calavam o que precisava ser dito e o que doía dizer. Livros amarelos onde estava ele ainda aprisionado nas suas palavras silêncio, no vazio dos seus silêncios, no tanto que tinha sonhado e não tinha sabido ser. Livros enrugados, como ele enrugara também.


Naquela casa onde se escondiam e empoeiravam todas as suas memórias, ficava nu perante ele. Nela, era impossível fugir aos tantos de erros, às tantas de fugas, ao desconforto da rotina. Voltou a sentar-se na velha cadeira e rodeou-se das memórias que, mais uma vez, lhe tinham conduzido os passos à casa de onde antes, muito tempo antes, quisera fugir.


E reconheceu que estava, finalmente, no momento certo para voltar a casa, para voltar aos panos amarelados das suas avós, aos papéis desprezados do seu pai, à dor da perda da sua mãe.


Pegou da estante no Les Voix du Silence, de Malraux. E pensou como a sua vida tinha sido construída em silêncios e ausências. Pensou nos filhos distantes, que não conhecia nem o conheciam a ele. Pensou na solidão que o levava a percorrer, dia após dia, o caminho até à casa quase abandonada onde só viviam os seus fantasmas. E pensou nos netos…


Talvez estivesse na hora de lhes ler histórias, de os sentar no colo e lhes mostrar como é imaginar o futuro em palavras mudas. Talvez os conseguisse trazer para longe dos seus jogos, dos seus brinquedos, da televisão. Talvez afinal ainda fosse dele a possibilidade de construir a ponte que desse vida nova àquela casa, que a voltasse a aquecer de brincadeiras e gargalhadas. Talvez os linhos servissem ainda para enfeitar mesas e os armários se abrissem para que as porcelanas voltassem a respirar. Talvez houvesse novamente música no ar. E ruído. E esperança. E poeira de sapatos pequeninos depois das brincadeiras no jardim.


Talvez fosse ainda possível tirar o pó a tudo. Tirar o pó dele mesmo. Arejar as memórias.


Então, lesto, levantou-se da cadeira que já lhe abraçava o corpo confortavelmente, e dirigiu-se à janela que abriu de par em par. Agora… bem, agora só faltava deixar a família entrar na sua casa, esperando assim conseguir deixá-los reentrar na sua vida.



Hipatia, da
Voz em Fuga