agosto 23, 2005

25. O que disseram depois, de Palavras em Linha

Sim, era com ela que eu passava o tempo todo mas o que disseram depois foi o que quiseram dizer. Disseram tudo o que se quis ouvir e em tudo eu fui ouvindo, ao longo do tempo, versões várias de uma história que só eu sabia. Passávamos juntos os intervalos e todos já diziam que éramos namorados e às vezes atiravam-nos pedras – “olha os namorados”, “olha os namorados” – cantavam, e ela, envergonhada, baixava os olhos e depois erguia-os para mim, inquirindo-me sobre a verdade do silêncio. E era verdade, eu quis ser o seu namorado desde que ela nasceu daquela mãe que se sentou no lugar da minha, que se penteava no espelho onde antes eu via a minha mãe dizendo o meu nome. Aquela mãe que quis contar-me, depois, as mesmas histórias para adormecer, histórias que falavam sempre de bruxas más escondidas em quartos escuros, saindo a voar em vassouras velhas rumo à França. Antes tinham dito que a minha mãe me deixara a chorar nas escadas, que tinha ido embora ao fim do dia e que eu fiquei a acenar-lhe com a mãozita chorosa, num adeus quase até logo. Do que me lembro foi de ficar sentado no cavalinho de baloiço durante todo o serão, enquanto o meu pai olhava para mim. Mas não sei porque lhe conto isto. Só sei que quis ser o namorado de Helena, sim, para sentir que alguém me dava o afecto que ela me negou quando se despediu de mim nesse fim de dia.


Sim, lembro-me, ele passava todo o tempo com ela. Já foi há muito mas lembro-me muito bem de os ver andar de baloiço nos intervalos; depois começaram a faltar-me às aulas. Claro que era meu dever chamar os pais à escola, não acha? Mas não é verdade que tenham vindo logo. Se tivessem vindo talvez se pudesse ter evitado o que depois aconteceu. Mas há este hábito terrível dos pais adiarem as coisas que são realmente importantes. Reconheço que ele era um miúdo complicado, já nessa altura escrevia uns textos estranhos nas palavras e mais estranhos ainda nas ideias que deixava escritas. Coisas de adulto, pensava eu, de criança que cresce depressa demais. Mas não sei se pensava isso nesse tempo ou se só o penso agora, já que nessa altura as atenções se dispersavam sobre todas as coisas do dia-a-dia e ele era um entre os outros. Dizia-se que o pai o tinha rejeitado, desde o dia em que a mãe o deixara a chorar nas escadas. Talvez fosse essa a razão de todas as coisas. Ele era um miúdo complicado. Ela não. Ela destacava-se pela brancura da pele, pela maneira especial com que se afirmava, sem querer ser a melhor aluna. Mas era. Era toda sensibilidade. Toda inteligência. Helena era a beleza. Era tudo, Helena!

Sim, disseram-nos que eles passavam todo o tempo juntos e que faltavam às aulas. Mas só nos disseram depois. É claro que tudo se podia ter evitado se nos tivessem chamado à escola logo que a estranheza dos factos lhes chamou a atenção. Digo-o eu, Maria do Céu, mãe de Helena, que o pai nunca mais teve condições para falar ou emitir opinião. Não tente falar com ele, não vai adiantar nada ao que já sabe. E digo também que o pai costumava pôr a pequenita nos joelhos para lhe contar histórias, mas sempre que o fazia chamava-o também a ele; não é verdade que o tenha rejeitado, não é verdade que o tenha obrigado a ouvir as histórias sentado à porta da sala para não incomodar a serenidade da família, como se disse. Se isso aconteceu foi naquele dia em que ele despedaçou, uma a uma, as minhas violetas dispostas em vasos sobre o parapeito da janela. Ele era já um garoto complicado mas eu não fui madrasta, não, fui mãe, que a outra deixou-o a chorar nas escadas e foi para França.

Se ela me deixou a chorar nas escadas a culpa foi de alguém. De Helena, que quis nascer para me anular a existência? Talvez a culpa tenha passado daquela mãe para ela. Ambas inimigas. No baloiço eu sentia que ela era minha e a pouco e pouco prolonguei esses minutos até me encher do seu perfume e da transparência da sua pele, até sentir a tontura de todas as emoções mal contidas. Fraco entendimento de menino, disseram também, e eu não sei se tinham razão, mas quando lhe empurrava os ombros para que o baloiço se levantasse no ar e pairasse no azul do céu da nossa escola, tinha sempre a visão daquelas duas ruas de casario esboroado, de telhados baixos e janelas com postigos, entre uma encosta de socalcos e uma parede velha em cujas brechas nascera musgo. Era para aí que dava a janela emperrada. Tinha de a levar a esse lugar. Era lá que iríamos abraçar-nos, rendidos à cumplicidade dos nossos verdes anos. Era lá que tudo iria passar-se. Se faria o mesmo? Como é que a gente pode dizer se faria o mesmo? É tudo uma questão de ausência. Ou de uma presença forte sobre essa ausência. Disseram também que construí a minha vida de vinganças e essa pode ser a razão de tudo, incluindo este lugar onde me vêem, que é um lugar de desassossego. Não gosto de vasculhar no passado: em cada estrato, quando estamos a libertar-nos de coisas inúteis, como a areia e as pedras, escolhos que camuflam pequenos cacos, encontramos indícios, enigmas que não nos deixam dormir em paz sem que lhes adivinhemos um sentido. Não sei porque lhe estou a contar isto, talvez a minha história sirva para a sua história, para a sua escrita. Registe nela, com as palavras que eu deixei no passado, a face branca de uma menina que eu vi depois no caixão, de longe, porque já nessa altura a culpa me matou também a mim. Mas nada do que se disse foi verdade.

Palavras em Linha