4. alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui, por Ivar Corceiro
Durante a noite alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui, e eu sentei-me no parapeito da janela onde ainda estou. Nunca vi Vera passar o túnel. São tantas as vezes que um homem olha para o chão, penso agora, que não encontro resposta para a forma preocupada como a mobília me encara. É verdade que estou a olhar para o chão, e que me acalento na fraca pulsação da luz matinal. É verdade que talvez Vera ainda venha hoje. As árvores caminharam durante a noite aproximando-se da casa, e algumas estão deitadas lá fora à espera duma história de amor. As histórias de amor são sempre ridículas, penso agora, e não percebo porque geram tanta expectativa.
Nunca vi Vera passar o túnel. A árvore que está do lado de lá avisa-me sempre quando ela vem. Fecho as pálpebras e, no escuro que dela me aparta, o mundo aproveita para se mover, criando um lapso de tempo indefinível. Quando as reabro já ela está ao meu lado, sorrindo por me ver sempre de olhos fechados. Não suportaria vê-la aproximar-se sem saltar da janela e correr para ela, digo-lhe. Ela sorri de novo.
O mundo acabou de se mover, e Vera toca-me com a brandura dos pássaros que vão pousando nos ramos. Dá-me um saco de pão e diz que hoje não pago, que é oferta. É verdade que eu nunca comi o pão que ela me trouxe, todas as manhãs, durante anos. É verdade que nunca mais vou poder não o fazer. É verdade que amanhã estarei aqui e Vera será operária a muitos quilómetros daqui, e que depois de passar o túnel não a sentirei de novo a pousar em mim. Ela sorri e afasta-se. Fecho as pálpebras, e a íris que resguardo aproveita hoje para se rir de todas as pessoas que não se sentam nos parapeitos das janelas. As árvores que esperavam uma história de amor morreram, mas não faz mal: as histórias de amor são sempre ridículas.
Ivar Corceiro, do blog Bagaço Amarelo
Nunca vi Vera passar o túnel. A árvore que está do lado de lá avisa-me sempre quando ela vem. Fecho as pálpebras e, no escuro que dela me aparta, o mundo aproveita para se mover, criando um lapso de tempo indefinível. Quando as reabro já ela está ao meu lado, sorrindo por me ver sempre de olhos fechados. Não suportaria vê-la aproximar-se sem saltar da janela e correr para ela, digo-lhe. Ela sorri de novo.
O mundo acabou de se mover, e Vera toca-me com a brandura dos pássaros que vão pousando nos ramos. Dá-me um saco de pão e diz que hoje não pago, que é oferta. É verdade que eu nunca comi o pão que ela me trouxe, todas as manhãs, durante anos. É verdade que nunca mais vou poder não o fazer. É verdade que amanhã estarei aqui e Vera será operária a muitos quilómetros daqui, e que depois de passar o túnel não a sentirei de novo a pousar em mim. Ela sorri e afasta-se. Fecho as pálpebras, e a íris que resguardo aproveita hoje para se rir de todas as pessoas que não se sentam nos parapeitos das janelas. As árvores que esperavam uma história de amor morreram, mas não faz mal: as histórias de amor são sempre ridículas.
Ivar Corceiro, do blog Bagaço Amarelo
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