novembro 08, 2005

51. A Luciah, por Ivo Cação

Sokolsky (spead)

Há um estranho pacto entre as bruxas e as coincidências.

Vêm ambas de um lado de lá do sonho.

E ambas existem mesmo sem acreditar.


Paris é uma festa.

Paris já está a arder.

Paris nunca se acaba.


Luciah encontrou-me cedo na infância, e olhei para ela como se fosse verdadeira.

Ela tinha todas as formas e mais as formas de mulher.

Parecia sempre ser uma coisa e era outra.

E mesmo essa coisa que ela era, não era ela mas outra coisa.


Luciah construía mundos e com isso construiu os meus mundos.

Dizia que Kafka era igual a Kapa, mesmo que fossem diferentes.

Que Cervantes era igual a Quixote e Sancho, ao mesmo tempo.

Falava de deuses e humanos em pé de igualdade e criava falsos deuses assim como falsos humanos que eram igualmente verdadeiros.


Luciah traz-me todos os dias notícias frescas num prato aquecido com o fogo do inferno.

Traz-me anjos, santos e bem-aventurados aventureiros.

Exemplos do que se pode ser e do que se não é.

Sonhos que enchem o mundo como o ar que se respira.


Porque gosto então de Luciah se sei que é mentirosa?

Porque não passo eu sem as suas nocturnas fábulas rotineiras?

Pior que isso: porque vou, como um dependente, à procura das falsidades de Luciah?

Talvez por ser ela que faz de mim humano.


É Luciah que me traz à cabeceira a ligeira hipótese de considerar o viver como coisa aceitável.

É ela que flutua sobre a estrutural fantasia dos textos.

É Luciah o lado de cá de eu não me sentir um mero DNA reprodutível.


Cada vez que encontro Luciah, e em que ela a seu bel-prazer me faz, com as suas artes, oscilar violentamente entre o amor e o ódio, entre a paixão e a viagem, entre o medo e a sofreguidão, entre o poder e o vácuo, entre a música e o ardor do mérito, percebo que Deus, na sua superior sabedoria, criou Luciah para dar sentido a uma obra eternamente adiada.


Luciah, campeã da ironia, há-de morrer sem revelar os seus segredos!



Ivo Cação
Blog: Zumbido