março 30, 2006

4. (sem título), de J.P.



Olhos esbugalhados, no peito arquejante as mãos crispadas. E, ora corria ora caminhava muito hirta, fixa num ponto preto adivinhado de longe. A água gelada fustigou-lhe a cara e nem sentiu. Saia levantada sobre o corpete, os colotes ensopados em sal e areia, e aquela vontade enlouquecida e férrea de prosseguir, na recusa da perca daquele bocado de passado.
Estacou no agora o tempo parado, respiração e gestos controlados. Ajeitou a saia preta, passou os dedos sobre as madeixas descompostas, e deixou as ondas lavarem-lhe as mãos presas de alma, enquanto os pés se tornavam suavemente parte de areia como partículas polidas de universo.
Tocou ao de leve o pé do piano, e deixou-se levar nas patas das Fragatas, planando sobre os penhascos esverdeados. Seria então quando as nuvens lhe tocassem o olhar, que se deixaria cair. Sabia-lhe bem a brisa molhada, o som das asas embalado em forma de pernas deitadas e quentes, entrelaçadas. A vontade de manter as pálpebras encerradas, a vontade de as abrir. O aconchego dos linhos com cheiro a ferro quente de carvão, as Prímulas delicadas no jarrão, os pés de ervilha na janela.
Contemplava as cercas novas, o medo e a curiosidade de menina, que já fora, mas que por dentro nunca cresceria, segredo só dela emudecido em forma de palavras que se recusava a dar a escutar. Arfou um pouco mais entontecida, e o ponto preto lá no fundo a ficar desfocado, entre o limbo acusador do consciente e do inconsciente.
Deixou-se escorregar, enrolando as algas na passagem, de encontro ás vagas que lambiam a praia, rastos de dedos na areia ensopada, o vestido casco escorregadio, uma mão que volteia à procura do ocaso, o pé do piano encontrado, o corpo carcaça fendida inerte e enclavinhada.
Içou-se devagar, o lado esquerdo do coração a dizer que sim, o outro lado que não, e devolveu ao mar lágrimas sem som, agora rio luminoso em fim de dia.

J.P.