abril 07, 2006

16. Chá no Deserto, de bastet

Só já pela noite vinham os enxames de estrelas apagar o amarelo das almas cansadas do pó e atenuar o cheiro dos corpos sujos, suados e despidos da dignidade que oferece um banho e roupa fresca. Não há eco no vazio mas o silêncio propaga as vozes quase perto do além. O telefone do deserto. Ouvia os murmúrios de si mesma, como se do ventre lhe soprassem os fantasmas da digestão, e da mente, os estalidos das memórias mais profanas.
Não há cor quando o dia se cerra sobre as dunas. O azul tuareg é negro, fechado e envolve no escuro as sombras e os vultos acocorados em pontos de fogo, luz e fumo. Os Somovares. Neles fumega o chá. Pequenas lamparinas de uma civilização perdida, pequenos sorvos de menta que aquecem o frio e uma esperança qualquer.
Atravessara-se ao seu fim. Despojara-se das mulheres que fora, para agora não perceber quem era. Era só traços de areia e vento e deixara escorrer-se para lá dos limites do improvável. Nómada dos nómadas. Falava muda o que ninguém percebia. Era de um outro planeta qualquer da mesma Terra redonda, imensa e plana. Os outros tinham casa na linguagem e era vê-los acomodados nas conversas.
Quisera imolar-se pelo fim da tarde quando deitada no chão esperara que o sol lhe iniciasse a combustão e a deixasse em cinzas. Um pouco de si chegaria à cidade e recuperaria os dias no ponto em que os deixara. Fora antes tomada pelo corpo de um homem, e soubera que o único oásis possível lhe escorria em gotas pelas pernas. Não há vestes que cubram o sem pudor e não há pudor na loucura do deserto, nem véus que guardem a sanidade ou que lembrem a vontade de caminhar. Só o torpor que distorce a realidade, amansando-a até à sobrevivência, ao movimento inaudível da respiração em compasso binário.
Adormecera depois mas não dormira com ele, apenas com o seu cheiro e com o íntimo alarido de conceitos recorrentes. Nestas horas de espasmos nocturnos tudo lhe parecia mais real que nas vigílias diárias de olhos despertos. Nem sempre o presente é mais verdadeiro. Podemos ser enganados pelos sentidos exaustos e assim trocara os dias de miragens pela verdade sobejante do repouso. Estava descrente de outro resgate e por isso, quando ouviu as palavras acreditou estar morta, ou que fossem espectros desamordaçados do seu diafragma – well come back! Uma sombra de si estava de volta ou era talvez o milagre do chá.

bastet