7. helena, de grão de pó
revolve-se na cama, nas noites em que a insónia entra pela janela e senta, numa pose de buda, no soalho cor de pinho à cabeceira do leito de lençóis negros.invariavelmente, o mesmo sonho a trazer-lhe a espertina e o abrir de olhos sempre à hora pouco certa. 05:01. um baloiço ao vento, solitário, ladeado por duas árvores, atrás das quais alguém se esconde. consegue ver-lhe as mãos, pequeninas.há três meses que se repete, o sonho, onde às vezes avança uns passos, em direcção às mãos. e chama. chama qualquer nome que não consegue ouvir, com uma espécie de embargo de voz que não entende. como não compreende ainda que começou a sonhar no dia em que leu, sob a varanda da sua infância, o fio condutor do seu inconsciente, os eléctricos são bichos de seda, cujas borboletas morrem ao desovar. havia anos que os seus pés não pisavam as pedras daquela calçada… lembrava-se vagamente de uma noite em que o pai chegara a casa com a cara fechada e anunciara, naquele tom que não admite réplica vamos mudar de cidade.nos resquícios da sua memória, apanha o fio solto duma qualquer nostalgia que o seu cérebro não consegue evocar. uma espécie de brisa fresca temperada de riso de criança.há três meses, 87 dias, mais concretamente, riscados no calendário após a segunda semana, que desperta do sono, sempre àquela hora curiosa, e olha o homem adormecido ao seu lado. por vezes o seu anelar esquerdo lateja, talvez esteja apertado… levanta-se à fraca luz do candeeiro da mesinha de cabeceira para pousar a aliança, olhando num suspiro o espelho pouco iluminado donde ressalta uma outra hora. 10:20. imperceptivelmente, arregaçam-se-lhe as comissuras dos lábios. é que aquela era a hora do recreio grande. com um sorriso que lhe solta as perguntas das paredes do cérebro, volta a deitar-se, olvidando o sonho. ocorre-lhe que precisa de um livro… talvez o escreva.até amanhã.
Grão de Pó
Pastéis d'óleo
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