novembro 08, 2005

52. Metapoema óbvio, por Prólogo

Carstanova (mummy)

Ontem à tarde era para ser verdade o teu rosto.

Estava escrito assim no desejo e eu acreditei.

Houve ainda um gesto intenso, um impulso, o susto de um momento.

Ligeiro tom da inocência que desarticula o tempo.


Não é justo que haja o óbvio num poema.

E ainda menos a evidência.

Há-de haver emoção, ambiguidade, ironia e desdém.

Mas não há-de ser óbvio nem evidente.


Sabias então mais do que dizias.

Ou sabias mas não sabias que sabias.

Caía do teu hábito a ilusão sintomática do não ser.

E o olhar estava ausente como o fogo.


Num poema uma lua nunca é a lua.

O tigre é sempre outra coisa que não um tigre.

O que se mostra é o que se quer ocultar.

O que se ouve é apenas o desvio da voz.


Atrás do gesto e da franqueza

Da regular imensidão das possibilidades

Deixaste uma sombra, uma dor e um voo.

Uma mentira deformada pela vontade.


O poema nasce no interior das meninges

Espremidas pela angústia, pelo medo, pela emoção.

Nasce contra tudo e contra todos

À espera de conseguir dizer o indizível.


Não cheguei a saber o que querias.

Tal como não percebi o meu desejo.

O estalo inglório dos meus sentidos

Perdeu-se em vagarosos movimentos de recuo.


Cada verso que se expõe à voz do mundo

Perde o dono, a identidade, o ser e a intenção.

Passa a ser uma coisa nova em cada boca.

E se assim não for não é bem, nem é verdade.


Não sei que vi em ti que me domou.

E por isso me fiz macabro tigre da indiferença.

Subi a mais alta plataforma das certezas.

À procura de uma trágica lua, solta e inundada.


Envolto em panos que revelam escondendo,

Oculto recheado de evidências,

Mentira quase certa na intenção,

Prazo acabado do saber e do sonho,

Momento interminável de prazer doloroso,

Sombra luminosa de destino ocasional,

Tudo é óbvio menos tu.


Prólogo