agosto 02, 2005

8. o baloiço, de grão de pó

o baloiço retornou à solidão das horas mortas em que a escola ocupava o lugar dos sonhos das crianças que brincavam nas linhas brancas traçadas no alcatrão. e os risos foram substituídos pelas folhas amarelecidas das árvores vestidas de outono.
às vezes, ao fim do tarde, os seus metais semi enferrujados vislumbravam ao longe uma silhueta que com o passar dos anos foi perdendo a familiaridade. reconhecia-lhe, contudo, a pose franca marcada de uma qualquer tristeza indizível. ao início, quase que sentia a humidade salina escorrida pelos olhos, um qualquer reumatismo metálico, cujo diagnóstico urbanista marcaria o fim da sua existência e substituição por um modelo mais novo, de madeira, segundo os novos catálogos camarários. mas isso só daí a muitos anos, que aquele parque parecia ter ficado esquecido das novas normas de segurança e higiene. ainda tinha areia.
no desfolhar dos calendários, puseram, onde a vista podia alcançar, a companhia de um banco de jardim, ladeado por duas amostras de árvore, ao início, que hoje lhe recordam que os tempos de juventude já se escoaram debaixo das duras chuva de Inverno. e nesse banco de jardim, a silhueta que quase reconhecia, não fosse a sua memória apagadiça de anos de existência que lhe cortava tantas vezes o fio à meada, costumava abrir-se uma pasta parda, de onde saíam folhas de papel reciclado. tinha a certeza que era reciclado, as árvores sussurravam-lhe a satisfação da celulose reaproveitada, a sua imortalidade… contavam-lhe também o que conjuntos agrupados de lâminas de papel faziam vibrar no ar. chamavam-lhes histórias e eram escritas pela silhueta familiar que envelhecia sob o seu olhar. parecia que era famoso. e escritor. mas para além das palavras tatuadas no beije pardo, soltava-se no ar uma indizível melancolia de qualquer coisa perdida para sempre. eram os manuscritos que o murmuravam, à laia de rumor, assumpções pressentidas de variações subtis da pressão do carvão de lapiseira mina 0,5 no papel.
depois, as pessoas que passavam começaram a parar ali, ao seu lado. autógrafos. o baloiço não compreendia muito bem, mas associava-os às palavras gravadas na tinta descolada dos seus membros enterrados na areia usada. sabia-se, pelas folhas de jornal escorraçadas pelo vento, que acontecia que as pessoas adquiriam algum tipo de notoriedade. coisas de homens. contudo, o que ele realmente queria saber, era onde estava a outra silhueta, a de menina que tomava a mão daquele agora homem ali sentado e lhe limpava as lágrimas dos olhos. dela as árvores nada sabiam. havia sempre uma mulher naquelas histórias e algo que ligava as mulheres dos diferentes contos, mas uma mulher sem rosto. sem nome.
até ao dia em que as folhas de papel reciclado tiveram que guardar espaço para 37 páginas de papel imaculadamente branco, engolindo o despeito por aquele parente estranho, traziam um nome a cada página par – maria helena. e foi então que algo recolhido há tanto tempo nas recordações encaixotadas da memória sucedeu. a silhueta deu lugar à forma e à cor e o peso dos seus anos de melancolia e escritos, pousou-se no agora estreito baloiço enegrecido pelo tempo.
lá de longe, ressoaram os risos de crianças, de novo.

risca-me

grão de pó
Pastéis d'óleo