Ainda, o meu querido amigo, o Escritor Famoso...
Minha Muito Querida Rosário,
Nesta casa e nestas redondezas, há palavras coladas às paredes, ao chão, às pedras, às árvores, a tudo o que conheço como às minhas mãos. E colam-se também às memórias. Há quem se sinta acompanhado por anjos ou por espíritos. A mim, acompanham-me as palavras, sejam elas em que língua forem, maravilhosos entes invisíveis de ressonâncias difusas, ondeantes, que quase penso entrever pelo canto do olho ou no ondear das cortinas.
Talvez seja herança de minha mãe, que, ainda privilegiado na tepidez do seu ventre, me sussurrava poemas e histórias, as palavras fluindo na cadência directa das batidas do seu coração.
Calcorreio estas divisões vezes sem fim, e mesmo assim vou sempre descobrindo detalhes que a minha memória não lembra. Vê lá se isto se compreende! Dou comigo surpreendido pelo facto de o globo terrestre não reflectir o tom dos meus olhos depois das horas perdidas na infância a memorizar ao detalhe o contorno dos continentes! A idade talvez...Ou as palavras tomaram definitivamente conta de mim e estou a adquirir a natureza difusa delas.
“Nous avions cru que nous interrogions la peinture, c'est elle qui nous interroge. ", ouço Malraux dizer em surdina quando me sento na biblioteca. Sim, as palavras que consentiram em deixar-se domar pela minha pena sempre me devolveram os pontos de interrogação que coloquei à vida. Apraz-me o que penso ter aprendido, mesmo que pouco, mas o que me maravilha realmente é a sensação de mistério: mistério da vida, mistério dos sentimentos, mistério dos mundos desconhecidos de cada um. E pensar que quis tantas vezes ver a vida a preto e branco, simples, clara, taxativa. Nunca me agradaria tal vida....
Talvez seja para negar o destino que tanto escrevo. Talvez com tanto discurso apenas o venha confirmar. Isso já não me preocupa. Revisitado o passado por aquilo que hoje sou, tenho a sensação nítida de que o tempo é só este momento em que te escrevo, que todos os momentos passados e futuros estão condensados neste agora, como se juntasse em mim todos os momentos que sonhei ou vivi, todas as emoções que senti pelas pessoas que cruzaram o meu caminho, todos os mundos desconhecidos que entrevi nos olhares ou sorrisos de alguém. Enfim...
Minha querida, envio-te alguns olhares destas minhas andanças e aguardo a tua visita num destes dias (próximos, atrevo-me a insinuar). Talvez, quem sabe, não seja eu o único médium de palavras por aqui.
Um abraço terno
E.F.
(Maria, Estórias do Bicho de Seda)
Nesta casa e nestas redondezas, há palavras coladas às paredes, ao chão, às pedras, às árvores, a tudo o que conheço como às minhas mãos. E colam-se também às memórias. Há quem se sinta acompanhado por anjos ou por espíritos. A mim, acompanham-me as palavras, sejam elas em que língua forem, maravilhosos entes invisíveis de ressonâncias difusas, ondeantes, que quase penso entrever pelo canto do olho ou no ondear das cortinas.
Talvez seja herança de minha mãe, que, ainda privilegiado na tepidez do seu ventre, me sussurrava poemas e histórias, as palavras fluindo na cadência directa das batidas do seu coração.
Calcorreio estas divisões vezes sem fim, e mesmo assim vou sempre descobrindo detalhes que a minha memória não lembra. Vê lá se isto se compreende! Dou comigo surpreendido pelo facto de o globo terrestre não reflectir o tom dos meus olhos depois das horas perdidas na infância a memorizar ao detalhe o contorno dos continentes! A idade talvez...Ou as palavras tomaram definitivamente conta de mim e estou a adquirir a natureza difusa delas.
“Nous avions cru que nous interrogions la peinture, c'est elle qui nous interroge. ", ouço Malraux dizer em surdina quando me sento na biblioteca. Sim, as palavras que consentiram em deixar-se domar pela minha pena sempre me devolveram os pontos de interrogação que coloquei à vida. Apraz-me o que penso ter aprendido, mesmo que pouco, mas o que me maravilha realmente é a sensação de mistério: mistério da vida, mistério dos sentimentos, mistério dos mundos desconhecidos de cada um. E pensar que quis tantas vezes ver a vida a preto e branco, simples, clara, taxativa. Nunca me agradaria tal vida....
Talvez seja para negar o destino que tanto escrevo. Talvez com tanto discurso apenas o venha confirmar. Isso já não me preocupa. Revisitado o passado por aquilo que hoje sou, tenho a sensação nítida de que o tempo é só este momento em que te escrevo, que todos os momentos passados e futuros estão condensados neste agora, como se juntasse em mim todos os momentos que sonhei ou vivi, todas as emoções que senti pelas pessoas que cruzaram o meu caminho, todos os mundos desconhecidos que entrevi nos olhares ou sorrisos de alguém. Enfim...
Minha querida, envio-te alguns olhares destas minhas andanças e aguardo a tua visita num destes dias (próximos, atrevo-me a insinuar). Talvez, quem sabe, não seja eu o único médium de palavras por aqui.
Um abraço terno
E.F.
(Maria, Estórias do Bicho de Seda)
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