outubro 15, 2005

O Escritor Famoso entrega os prémios


Pois acabo de deixar a Mariaheli e a Marquesa D'Aires depois de mais um bate-papo mesmo ao pé do Canal, e o Ivar Corceiro - mas esse eu vou encontrando por aqui, o meu querido Contrabaixo 4 the people, a Didas e o Japinho, e os murtoseiros (que nunca falham!) Januário e Joaquim, e o senhor dos 7 meses, e o George Cassiel que andou numa azáfama toda a noite - de quem nos despedimos e re-saudamos umas duas vezes - :), e do André do Devaneios sem sentido - que foi o fotógrafo da noite (obrigada André!) e, é claro, da Lilly Rose, que é lindíssima, deslumbrante e que ninguém jamais vai esquecer - ;)!

E assim, com poucos mas bons, passei uma noite bem divertida! Ah, e imaginem que o Manuel do Pé de Meia nos telefonou e que fiquei mesmo com vontade de o raptar um dia destes para outra noite de amena e tonta (sabe tão bem!) cavaqueira.

Mas hoje, para além de conversa, uvas, chocolate, o bolo de ananás da Joana e uns drinks, entregamos um livro aos vencedores das edições anteriores do Escritor Famoso. Ainda se lembram?

Ivar Corceiro, por Helena
Maria Heli, por O Escritor Famoso
Didas, por O Sorriso
Marquesa D'Aires, por Com Saudades de Helena


E agora vamos lá voltar ao III Concurso! O Júri votou nos 19 textos e o resultado a que chegou foi o seguinte:

Dois textos, para além de As Palavras da Memória de Palavras em Linha (já seleccionado pelos visitantes do blog), foram distinguidos com a Pena do Escritor Famoso (acabo de inventar o galardão). Esses textos são:


  • Agulhas Ferventes de George Cassiel - e o autor já teve o privilégio de receber o seu prémio



Estes dois textos tiveram as pontuações médias mais elevadas.

Mas acrescento que os textos de Prólogo, de Ivo Cação, de Ivar Corceiro, de Palavras em Linha, da Mushu e de Hipatia ficaram mesmo muito próximos. A qualquer um destes textos foi mesmo atribuida a nota máxima (10) por algum membro do júri. Tivemos alguns casos de fortes paixões individuais: os textos da J.P., da Fausta Paixão ou do Manuel (mfc), mas aí o júri esteve mais dividido, o que se reflectiu na pontuação final global. Todos concordamos que a qualidade dos textos foi bastante elevada, que o nível de escrita era muito bom, variando depois, apenas, a percepção de cada um sobre o grau de originalidade ou a eficácia na defesa da ideia central do texto, por parte de cada autor. Acrescentem-se a estes, outros factores ainda mais subjectivos, como o da empatia que se estabeleceu com o texto, ou a emoção que este nos transmitiu (comoção, surpresa, humor,...).

E assim, depois de agradecer MUITO a todos os participantes a mestria, o empenho e a simpatia que revelaram ao decidirem participar neste Concurso, e de agradecer também MUITO aos meus colegas "júris" o esforço e a atenção que dispensaram a esta iniciativa (e é tão bom partilhar estas tarefas e sentir que entraram nisto com o melhor dos espíritos!), dou por terminada a terceira edição do Concurso O Escritor Famoso!

A próxima edição vai ter início no dia 2 de Novembro mas ... vai ser diferente! :)

Fiquem agora com os três textos vencedores.

  • As Palavras da Memória, por Palavras em Linha
Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.


  • Agulhas Ferventes, por George Cassiel
"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. Tudo no mesmo sítio, sem novidade, muito despida, quase sem móveis, apenas o suficiente e muita coisa espalhada pelo chão em pequenos montes, livros em montes que já não cabem nas prateleiras, roupa em montes, sacos em montes, uma cordilheira de objectos que forma a minha casa, percorri-a como um caminhante nas montanhas, mas sem o sabor da descoberta, do desafio da exploração, para não perder a concentração no meu objecto último, a secretária sob a janela do quarto – um dos poucos móveis, tal como a cama. A escrivaninha com vista para as árvores, para o destino que as agita e para o vento que empurra os transeuntes no passeio lá muito ao longe, a escrivaninha onde destruía papéis num fervor incontrolável, uma ânsia esfomeada de folhas brancas que permaneciam virgens, e voltava para os montes, procurando livros, ou comida, para me acalmar, a cordilheira acalmava-me, mas não me distraía! Entrei como um actor entra em cena e fechei a porta. Encostei-me com a sensação de segurança, ali ninguém me poderia fazer mal, nem os sonhos, nem eu próprio, ou talvez só eu próprio, ali era eu comigo, era o habitat da minha existência perturbada, mas era apenas eu, e eu era o meu único inimigo, o meu inseparável assassino, a minha própria destruição que não se pode arrancar como quem arranha a pele – não sai, nós não saímos de nós mesmo, apenas nos transformamos; e não sabia como fazê-lo ou não queria acreditar que fosse da forma que a carta do dia anterior me sugerira; essa seria uma transformação radical, a mudança última de pele, o arranhar final da própria alma. Seria o assassino de mim mesmo. Mas ali, em casa, nada me poderia fazer mal, só eu próprio – era o que temia. Encostado, retomando o ritmo de respiração normal, mais calmo, reencontrando-me, deixei os dedos saborearem os veios da madeira envelhecida da porta, estava de regresso. Um banho, roupa lavada, um livro e um café – como o regresso à normalidade se pode resumir a coisas tão simples, a uma satisfação das necessidades físicas e das de conforto intelectual; automedicara-me: para afastar os pensamentos que me perturbavam desde o dia anterior, precisava sentir alguma normalidade, ainda que a mesma normalidade que me perseguia e que me deixava insatisfeito com a vida, mas precisava urgentemente dela, para que não me perdesse e não me deixasse levar num percurso sem regresso, para não afunilar a vida, uma "afunivida" era o que vivia; automedicara-me um banho, roupa lavada e café com um livro, isso
bastar-me-á,
disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior.
Bastar-me-á.
Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos
(…)
e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço,
(…)
chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos,
(…)"

  • A Casa dos Espirros, por Lino Centelha
Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.

Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.

Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.

Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.

Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.

O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.

Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.



[Lino Centelha e Palavras em Linha irão receber por Correio o respectivo prémio (agradeço que indiquem uma morada)]