O Escritor Famoso entrega os prémios
E assim, com poucos mas bons, passei uma noite bem divertida! Ah, e imaginem que o Manuel do Pé de Meia nos telefonou e que fiquei mesmo com vontade de o raptar um dia destes para outra noite de amena e tonta (sabe tão bem!) cavaqueira.
Mas hoje, para além de conversa, uvas, chocolate, o bolo de ananás da Joana e uns drinks, entregamos um livro aos vencedores das edições anteriores do Escritor Famoso. Ainda se lembram?
Ivar Corceiro, por Helena
Maria Heli, por O Escritor Famoso
Didas, por O Sorriso
Marquesa D'Aires, por Com Saudades de Helena
E agora vamos lá voltar ao III Concurso! O Júri votou nos 19 textos e o resultado a que chegou foi o seguinte:
Dois textos, para além de As Palavras da Memória de Palavras em Linha (já seleccionado pelos visitantes do blog), foram distinguidos com a Pena do Escritor Famoso (acabo de inventar o galardão). Esses textos são:
- Agulhas Ferventes de George Cassiel - e o autor já teve o privilégio de receber o seu prémio
- A Casa dos Espirros de Lino Centelha
Estes dois textos tiveram as pontuações médias mais elevadas.
Mas acrescento que os textos de Prólogo, de Ivo Cação, de Ivar Corceiro, de Palavras em Linha, da Mushu e de Hipatia ficaram mesmo muito próximos. A qualquer um destes textos foi mesmo atribuida a nota máxima (10) por algum membro do júri. Tivemos alguns casos de fortes paixões individuais: os textos da J.P., da Fausta Paixão ou do Manuel (mfc), mas aí o júri esteve mais dividido, o que se reflectiu na pontuação final global. Todos concordamos que a qualidade dos textos foi bastante elevada, que o nível de escrita era muito bom, variando depois, apenas, a percepção de cada um sobre o grau de originalidade ou a eficácia na defesa da ideia central do texto, por parte de cada autor. Acrescentem-se a estes, outros factores ainda mais subjectivos, como o da empatia que se estabeleceu com o texto, ou a emoção que este nos transmitiu (comoção, surpresa, humor,...).
E assim, depois de agradecer MUITO a todos os participantes a mestria, o empenho e a simpatia que revelaram ao decidirem participar neste Concurso, e de agradecer também MUITO aos meus colegas "júris" o esforço e a atenção que dispensaram a esta iniciativa (e é tão bom partilhar estas tarefas e sentir que entraram nisto com o melhor dos espíritos!), dou por terminada a terceira edição do Concurso O Escritor Famoso!
A próxima edição vai ter início no dia 2 de Novembro mas ... vai ser diferente! :)
Fiquem agora com os três textos vencedores.
- As Palavras da Memória, por Palavras em Linha
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.
- Agulhas Ferventes, por George Cassiel
bastar-me-á,
disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior.
Bastar-me-á.
Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos
(…)
e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço,
(…)
chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos,
(…)"
- A Casa dos Espirros, por Lino Centelha
Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.
Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.
Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.
Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.
O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.
Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.
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