agosto 02, 2005

9. o escritor, de grão de pó

acordou tarde. esquecera-se de programar o despertador, depois da festa de apresentação do seu último livro, no dia anterior. mais um sucesso, sem dúvida, garantiam críticos e amigos. na realidade, bebera demais e tudo o que conseguira fazer ao chegar a casa fora arrastar-se até à cama, não sem antes perder a conta do tempo e do cálculo da quantidade de taças de champanhe ingeridas no degrau de entrada de casa. acordou tarde e com a cabeça zoada, pensando para si que seria bom deixar-se de bebidas brancas, que o seu fígado já se ressentia. ao espelho via a pele amarelecida e subia-lhe a escala da hipocondria hepática.
recorda-se das suas pernas longas e torneadas, envoltas em meias de seda que nunca havia vestido, difusas agora da tontura do álcool ainda em circulação, e do seu vestido claro, iluminado pelos tons de cereja do seu cabelo castanho. da sua pele aparentemente suave e do cauteloso andar sobre sapatos novos, de salto agulha.
não pensara que fosse, ao reavaliar o remate silencioso de palavras quando ela lhe pedira que lesse o seu manuscrito. achava que lhe ferira o orgulho… mas contra todas as suas expectativas ali estava ela. reconhecera-a pelos passos, que detrás dos anéis de fumo do seu cigarro, mal lhe olhara o rosto.
somente mais tarde, sentado no mesmo banco de jardim de sempre, com o amontoado de papel ao seu lado, o nome dela acordou com o baloiçar das memórias do recreio prolongado… maria helena… e foi então que o pacote de leite tornou a rebentar, cheio, em cima das suas calças com joelheiras cosidas, e a mão doce voltou a pegar na sua, meio pegajosa do achocolatado, depois de lhe limpar as lágrimas. não pensara tornar a vê-la. no último dia de escola tinha-lhe deixado um bilhete naquelas folhas que as meninas coleccionam, cor-de-rosa e perfumadas, que se ia embora, que gostava dele. lembra-se de ter voltado a sentir o sabor do sal a escorrer face abaixo. e de a ter esquecido com a puberdade.
recorda-se da sua mão esquerda com o seu anelar inchado do garrote de ouro, enquanto obriga a carne cansada à água fria do chuveiro.

risca-me

grão de pó
Pastéis d'óleo