14. O coito, por prólogo
Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar.
Claro que desconfiava que a história estava mal contada. Habituara-me a que, tal como com o sexo, os adultos nos escondiam sempre algumas partes, suponho que com a pedagógica intenção de nos manter interessados em continuar vivos.
Entre as histórias mal contadas e a verticalidade da condição humana, a casa da infância ficou marcada no globo como o lugar em que tem que se olhar para cima para ver o céu.
É por isso que aqui volto quando necessito de alinhar de novo a bússola dos sentimentos. Nada explicável, eu sei. Apenas sensações, vibrações mentais que decorrem de comparar as memórias com os lugares, numa espécie de passatempo do tipo descubra as diferenças.
Os lugares são sempre outros. Aqui soube, entre outros, de Jesus Cristo e de D. Quixote. Não sei qual deles chegou primeiro. Não sei quem é o real que se tornou ficção nem quem é a personagem que se tornou concreta. Que mais faz? Que é a história senão essa capacidade de tirar à ficção os direitos de autor? Ou talvez o contrário...
O que me lembro tem pouco a ver com o que vejo. Os saltos que dava eram muito maiores que a altura da janela. Mas a janela era muito maior. A casa encolheu, os sons agora são menos silenciosos e os cães já não ladram.
Gosto de ter este lugar vertical de regresso. O ponto de partida que torna de novo a meta. O coito onde se volta no jogo das escondidas.
Prólogo
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