10. Estranhos frutos de vento, de Elisa
E o baloiço oscila ao vento.Agora só. Poucas crianças há no parque a esta hora a que o visito. Sento-me no baloiço e tento lembrar-me de Helena. Maria Helena. Era miudinha. Com os cabelos da cor de um castanheiro no Outono. A cor dos olhos já não a sei. Nem o tom da pele. Nem o da voz. Nem o aspecto que tinha nas manhãs frias de inverno. Mas lembro-me bem de como andava de baloiço Maria Helena. Oscilava com ele e com o vento. Maria Helena era o vento, nas tardes vagarosas em que nos escapávamos às aulas e procuravamos voar. Como o vento. Oscilando no baloiço. Por vezes eu empurrava. Devagarinho. Para que Maria Helena não caísse. Outras vezes empurrava-me ela. Com toda a força que conseguia ter. E mesmo assim, eu apenas ondulava até ganhar balanço. Pernas esticadas, pernas dobradas. Pernas esticadas, pernas dobradas. E voava mesmo. Eu. Lembro-me de tudo isto, enquanto estou sentado no baloiço. Sozinho agora. Sem a Maria Helena e os seus cabelos da cor tomada pelas folhas dos castanheiros, no Outono. Já o disse. Acendo um cigarro e a ponta põe-se a arder exactamente na mesma cor que tinham os cabelos de Maria Helena. Estava capaz de a ver chegar parque adentro. Não já pisando a areia, mas este chão que agora põe nos parques infantis, onde nem os cães se atrevem a fazer o seu chichi, onde nem perdemos as pequenas coisas que carregamos nos bolsos. Ou as memórias. Não sei onde deixei de me recordar de Maria Helena. Não sei em que outro parque perdi a sua memória toda.Maria Helena. Voltei a lembrar-me de como ela oscilava com o baloiço e com o vento. Hoje. Foi hoje que me contaram. E hoje estou aqui no baloiço, à espera que os cabelos de Maria Helena atravessem o portão. Há vinte anos atrás, numa noite qualquer, a minha mãe perguntou-me, recriminadora, que andava eu a fazer, pelas tardes, com a Maria Helena. Eu respondi-lhe com a verdade, que é sempre mais difícil de sustentar que a mentira: andamos de baloiço, mãe. A mão da minha mão voou mais depressa que o baloiço, naquela noite. Mas não me importei. Pensei na Maria Helena e nos castanheiros e no vento. Hoje a minha mãe perguntou-me, pesarosamente:- Lembras-te da Maria Helena? Aquela miudinha ruiva com quem ensaiavas brisas e vendavais, no baloiço, em vez de estares a resolver equações?De repente lembrei-me da Maria Helena, em quem não pensava há tantos anos. Disse:- Sim, mãe, lembro-me. Que aconteceu?- Morreu, filho. A Maria Helena morreu.- Morreu como, mãe?- Morrendo, filho. Há outra maneira de morrer senão morrendo?De repente a ideia da Maria Helena a oscilar com o vento no baloiço acertou-me não sei onde. Cá dentro. Não sei onde. Mas senti que o sangue começou a circular mais depressa. O medo de saber.- Mas como, mãe, de quê?- Morreu matando-se, filho. Um dia triste. Uma história triste.Fiquei a pensar na Maria Helena que, porque nunca mais a vi, permanecia pequena num canto da minha memória. Agora morta. E tão pequena.- Mas triste, porquê, mãe?- Não sei bem. Parece que há uns anos se apaixonou por um escritor famoso. Daqueles que não aparecem nas revistas e não vão à televisão. Não sei sobre o que escreve.- Que escritor?- Não me lembro do nome. Só sei que é um escritor famoso. Mas não aparece. Acontece que a Maria Helena criou uma obsessão pelo homem. Escrevia-lhe cartas. Telefonava para a editora. O escritor nunca lhe respondeu. Nem um autógrafo lhe mandou. Uma fotografia. Nada.- E ela matou-se por causa de uma pessoa que não conhecia, mãe?- Um dia, há uns meses, o escritor publicou um novo livro, segundo me contaram. Numa das páginas do livro, a Maria Helena leu uma frase que lhe tinha mandado, numa das cartas não respondidas...- Que frase, mãe?- Espera, acho que a anotei em qualquer lado. Era impressionante.Fiquei sozinho por momentos na cozinha da casa de quando era pequeno. O sangue continuava a circular com o ritmo do medo.- Olha, está aqui a frase.Peguei no papel, uma conta de supermercado amarrotada. O sangue não parava. Saí da cozinha. Corri até aqui. Ao baloiço. Sentei-me. Acalmei o sangue com os cigarros e as recordações de Maria Helena. A frase fui eu que a escrevi. Ninguém sabia e sabe que o escritor famoso sou eu. Não apareço. Não uso o meu nome. A frase era dela? A frase... a frase... «o baloiço oscila ao vento, como sempre. É com o que sonho todos os dias. O baloiço oscila ao vento. Como os mortos se baloiçam, no Outono. Pendurados em árvores que se recortam na paisagem. Estranhos frutos de vento, os mortos».Matei a Maria Helena. Matou-se a Maria Helena. No Outono. Oscilando ao vento no castanheiro da cor dos seus cabelos. Como quem oscila ao vento num baloiço.
Elisa
Pilar da Ponte de Tédio
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