agosto 08, 2005

17. Analepse de Verão, de Renato Quintas

Foi na minha boca que ela aprendeu a gostar de cerveja. Foi no seu corpo que aprendi a inocência ou regressei a ela como a um búzio.
Nenhum homem pode suportar, em voz alta, recordações tão intensas como a ternura em carne viva. Ou o amor por acontecer.
O que escrevo é para ela. Não para a Maria Helena desta noite. A do original. Mas a Maria Helena original, a de todas as noites desde aquele dia.
Ia ter com ela à escola de granito, portas vermelhas, escadas voltadas para o parque da vila. Sexo feminino, de um lado. Masculino, do outro. Já há muito tempo que eu lá tinha andado. E agora voltava para a namorar.
-Vem cá. Empurra. Com muita força para que eu possa tocar no ramo da árvore. Com muita força…estás a ouvir?
E sentava-se. Acomodava-se no baloiço, entalava o vestido debaixo das pernas; ainda em terra, colocava os pés em pontas, como se fosse bailarina.
- Já. Empurra! Com muita força. Se à noite vier andar de baloiço, aposto que consigo tocar com a ponta do pé numa estrela…
- E se não houver estrelas, nessa noite?
Já não me ouvia. Em pontas, ganhava altitude até tocar o galho da árvore.
Aqueles intervalos em que se escapava da escola, corria até ao parque em frente, eram já o pronuncio da sua personalidade calorosa. Da eterna analepse da minha vida.
Sempre soube que partiria, mas sempre me vi a partir com ela.
Quase mulher pedia-me a mão como se fosse a criança do parque de plátanos a contar os dias. Onde morava um baloiço e vive o sonho.
Ainda o vejo. Escuto o chiar do metal ao vento.
-Vamos passear.
Um dia pediu-me um abraço e pude sentir os seus seios, de leve, no meu peito. Como água a pedir sede. Beijamo-nos.
-Estava a ver que não! Tens de me ensinar a beijar. Foi muito mal?
Ela entalava-me, assim, como ao vestido, debaixo das suas pernas, no baloiço. Frontal. Nunca seria uma diplomata.
Intenso reencontrado. O melhor daquele beijo foi saber que o desejava. Como aos meus braços à sua volta. Como ao mundo, por ver.
O seu olhar um mar inquieto, esverdeado como o mar, há muito me trazia cativo. Preso ao desejo de a ver nua mulher.
Regressamos à vila. À esplanada onde o Outono chega mais cedo.
- Pede uma cerveja que a quero provar nos teus lábios.
- Primeiro, ensino-te a beijar. Sorri-lhe.
- Verão eterno. Verão a pedir arde. Quando pousas assim o teu olhar.
A tua cerveja…
- Leninha, que disseste à tua mãe, naquele dia?
- Maria Helena. Sabes que prefiro que me chames Maria Helena.
Já sou uma mulher e…
- E…
- E, esta noite, mesmo sem estrelas quero tocar numa. Com os pés em pontas, como se fosse bailarina. Entalar o vestido nas tuas pernas, sentar-me, como se fosse andar de baloiço.
O que disse à mãe não é importante. E o baloiço já nem sequer existe…
só a memória
…mas o teu sorriso continua quente no meu rosto
eterno verão a pedir arde.

Renato Quintas