18. Com Saudades de Helena, Marquesa de Aires
E Helena? Não sei o que disse à mãe, que explicações encontrou. A última vez que andámos de baloiço, tinha os olhos pregados no chão e um aperto na voz. O pai, que sofria da febre do sucesso, estava decidido a partir para África e levava a família. A carta de chamada, enviada por um tio de Joanesburgo, pousava sobre o aparador da sala de jantar, prometendo a todos um futuro melhor. Uma máquina de lavar roupa para a mãe, uma bicicleta para o irmão e a colecção completa dos livros da Anita para Helena. A mulher que não esqueci, que me fez desembarcar nesta cidade sitiada, era, aos 10 anos, uma miúda de sonhos simples. E o meu coração sobressalta-se, agora que deixo o aeroporto e avisto, ao longe, os edifícios fantasma do centro. Temo pelas minhas memórias, pela ternura desse primeiro amor. Os anos, e são muitos, podem ter engolido a rapariguinha tímida, de olhos rasgados, cabelos escuros e ondulantes. Quem sabe que rumos tomou, se mudou a cor do cabelo e enfiou nos dedos anéis de ouro. No bolso do casaco, tenho um endereço e um número de telefone. Mendiguei-os à família, a pretexto de uma viagem de trabalho. Não quis saber mais.
Helena não regressou quando o medo tomou o espírito dos emigrantes e transformou as ruas em lugares desertos. Por algum motivo, não fugiu, não se escondeu das armas e das balas, cujos ecos se ouvem assim que entro no hotel. Do outro lado, estende-se Alexandra, nome de mulher para um bairro onde convivem todas as sombras que atormentam as pessoas de bem. Roubos, homicídios, violações, SIDA. Aqui, na cama do meu quarto, o conforto impede-me de pensar sobre o destino dos desafortunados. Vim atrás de uma menina de 10 anos que me dava a mão e fugia comigo para o parque, no intervalo maior das aulas. E é essa a imagem que me enche a alma, que me faz tremer os dedos. Não sei que voz me responderá do outro lado. Apenas peço que seja meiga, que guarde alguma lembrança da infância. Sinto que as palavras me fogem quando oiço uma mulher rir-se no fim da linha, como se estivesse à minha espera. Ou é o coração que me engana, a emoção que me atropela a razão. Todos os tons, todas as inflexões, os risos e as gargalhadas da conversa de 10 minutos dançam-me na cabeça. Helena não se esqueceu.
No bar do teu hotel, disse ela, antes de desligar. E cá estou, afundado numa cadeira, com um uísque duplo à frente, incapaz de ouvir a música que se toca no piano. Nem sei quem espero. Uma trintona desleixada, uma mãe de família ou uma rapariga como a que acaba de entrar, de cabelos soltos e andar gracioso. Baixo os olhos para tentar ler algumas linhas do livro que trouxe e convencer-me do pior. Nenhum amor permanece intacto durante 25 anos. Ou se perde o sentimento, ou ganhamos nós barriga, cabelos brancos. Não o escrevi e disse já, vezes sem conta, nos livros e nas entrevistas? O amor é o momento, a circunstância, a disponibilidade. Não as ilusões de um escritor, homem feito e, dizem, bem parecido que, aos 35 anos, decide tirar a limpo uma história de mãos dadas e lanches partilhados. E apesar de todo o sentido prático dos meus romances, sou eu quem espera pelo passado, com o peito agitado e trémulo de um adolescente. Espero um sorriso cheio de covinhas e quase não reparo que, no fundo da sala, a rapariga de cabelos soltos e andar gracioso me acena.
A mulher à minha frente é linda. Tal como prometia ser. Um olhar onde cabe toda a paz do Mundo, um modo de cruzar as pernas que dá vontade de abraços e beijos. Um sorriso com covinhas, uma voz com travo africano. E eu a gaguejar desculpas para a viagem, a falar dos meus livros, do muito tempo que passou. É Helena quem puxa o assunto, quem fala do nosso namoro inocente. Dos cromos que trocámos, dos gelados de um escudo que partilhámos e do teste de matemática que me deu a copiar. Sorri quando conta que, tantos anos no país do râguebi, do críquete e do hóquei em campo, continua a preferir o futebol. Anda, como todo o povo, feliz com o Mundial, acredita numa nova esperança. E, aos poucos, vai revelando a sua vida, os seus dias, a sua paixão. Não é uma família ou um homem que a tem cativa. É a terra. A imensidão do espaço, o pulsar dos dias, a poesia que se extingue a cada pôr-do-sol e o futuro que não existe. Os seus vieram com sonhos de grandeza, Helena chegou com mágoa no coração, sem desejos com preço em rands. A família partiu, depois, assustada com as mudanças políticas. Ela ficou, apaixonada pelo lugar.
Perdido nos olhos de Helena, lembro-me que vim para fazer uma pergunta, para saber que explicações deu à mãe, quando fomos repreendidos por mau comportamento na escola. Desajeitado, conto como disfarcei tudo com um simples «andamos de baloiço». Um largo sorriso nasce-lhe no rosto, sinto um certo embaraço, mas a miúda com quem andei de baloiço aos 10 anos não sabe mentir. Não esconde emoções, não me contará meias verdades. De olhos pregados no chão, um leve rubor no rosto, a mulher que não esqueci responde-me como o fez à mãe, há 25 anos: «disse que eras o meu namorado».
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