agosto 02, 2005

12. Adamastor, de Ivar Corceiro

Às vezes alguém bate à porta insistentemente e, insistentemente também, suavizo os passos. Deixo-me estar quieto, embora o coração se apresse a irrigar o cérebro em batimentos irregulares, e não abro. É que às vezes podes ser tu, e se não fores eu não o quero saber. Como nunca quis saber quem ias ser.Tractores enrugaram a terra que atapetou a nossa infância, e, esquecidos entre alguns edifícios que o tempo amamentou, desenharam o horizonte de fuligem, transformando o nosso baloiço altivo numa espécie de menino perdido da rua. Triste e apagado. A sua sombra, cujo lento movimento acompanhávamos durantes tardes inteiras de mãos dadas, desmaia agora entre as sombras dos prédios. Às vezes vou lá, e a lentidão com que o faço tange-me de tristeza. Tange-me, mas não me toca. Às vezes a minha cabeça adormecia no teu ombro e perguntavas-me se íamos casar. Que sim, que íamos. Aquele baloiço era a nossa testemunha.Às vezes bato à porta insistentemente e, insistentemente também, um homem alto demora a abrir. Depois diz-me para entrar e esperar quieto, que as putas estão todas ocupadas, e eu deixo-me estar tão quieto como o Adamastor, que é como me sinto: monstro e húmido de excitação, enquanto o sangue me corre nas veias e o sexo coagula à espera que uma mulher, às vezes linda, venha ao hall e me chame.A última que me chamou eras tu, Helena, e respondeu que sim quando lhe perguntei se me conhecia. Depois despiu-se parcialmente, até eu lhe dar a mão. Sentámo-nos na cama com os lençóis ainda desarrumados pelo cliente anterior e eu deixei-me adormecer no seu ombro. Os minutos baloiçaram toda a noite entre nós. Depois escrevi a minha morada num cartão e dei-lho com uma pequena nota por baixo: ainda não casei.Agora às vezes alguém bate à porta e eu não abro. É que às vezes podes ser tu, e se não fores eu não o quero saber. Como nunca quis saber quem ias ser.

Ivar Corceiro
Žuta Rakija/Bagaço Amarelo