março 31, 2006

7. Uma Questão de Genes, de Joaquim Pavão

Saltou para a frente. Teve que ser. Impulso ou talvez não, lá o carteiro encarregado de convicção se dirigiu por aquele caminho. Acho que lhe “limparam o sarampo” passado pouco tempo. Não sei, tive medo de me reter em corpo e abandonei-me à saudável cobardia. Aquela que nos faz ficar velhos e com sorte pouco doentes. Ele ainda vivia ali. Vida morta, parece que se esqueceu de respirar. Família preta, mas de luto, porque tudo o resto é claro, excepto as manchas negras da velha. Produto da masculinidade do pai do defunto.

O raio do pupilo não entrega o livro e o irmão, meu de sangue, morto ainda fede no meu nariz. Enterrem-no, as larvas agradecem e a terra fecundará um fungo qualquer.

Sai o caixão. O tuberculoso vai cair. Filho da puta, carrega um caixão para o deixar cair. Que lhe foda a merda do pé!
Agora discutem, os irresponsáveis. O caixão devia ser caro, e o joelho a sair do buraco mostra a falta de calças. Aquecem o coração arrefecendo o resto.
Quatro tiros. Lá se foi o tuberculoso. Faltam três. Puxo do cigarro. Pedem-me ajuda para o caixão.

- Pai! Quero fazer xixi.

Raios do moço! Só conheci a vizinha gorda do sexto andar. E essa nem mãe podia ser. Rebentaram-lhe os ovários com um tiro perdido. Era para o amante, mas ela estava por cima. Nunca mais repetiu a posição não vá o diabo tecê-las.
Safo-me do caixão, mas carrego uma pila de genes desconhecidos.

Enterraram-no. Finalmente e levou companhia. Não é qualquer um que vai acompanhado. O caixão ia mal fechado mas o verão vai no pico. O de cima ia vestido com alguma ventilação. Mesmo tuberculoso aguentou as primeiras três a respirar. À quarta decidiu parar. Poupou o velho cão, de gastar mais uma.

- Pai, quero fazer xixi.

E dos mortos ninguém carrega a minha pila.



Joaquim Pavão (site)

... Uma continuação dos outros textos (ver blog). A lente torna-se um narrador e a mesma lente é uma personagem, bem ao gosto dos filmes de Bogart e afins. A linguagem é mais crua e simples, ao nível de Lisboa dos anos 76, das casas de fado, do Vilhena e afins.

6. Gilda, de Hipátia



A porta abre-se e entra uma fabulosa mulher de vestido longo, azul noite, luvas até ao cotovelo que escondem os alvos braços e cabelo comprido cor de cobre. Bate com força a porta da casa asséptica caiada de branco, com vontade de, dessa vez, construir um castelo.

Começa a encher o espaço de almofadas de penas. Espalha velas perfumadas, pinta no tecto estrelas. Escolhe um pau de incenso perfumado, talvez maçãs verdes, ou qualquer fruto. Semeia confeitos doces e coloridos, ou então pétalas de flores. Faz uma cama no chão. Põe a tocar uma música com guitarras e cítaras.

Depois pára de repente... A câmara pára com ela.

Eles vão para a cama com a Gilda, mas acordam comigo.

E então, depois de ter o cenário completo, a figura feminina começa a destrui-lo com o mesmo afinco com que o inventou.

Nada faz sentido!

O cabelo ruivo voa em todas as direcções, as luvas perdem-se por trás das almofadas, uma delas cai sobre uma das velas, chamuscando-se ligeiramente...

Tanta gente presa ao sonho projectado num écran branco, esquecendo-se que, por trás do sonho, está uma pessoa de carne e osso.

A câmara recomeça o percurso, aproximando-se mansamente do rosto agora em repouso, a fabulosa cabeleira a beijar-lhe as faces.

Há dias em que os minutos são horas e sinto a alma parada no tempo à espera não sei de que milagre para pedir licença para voltar a nascer.

E o plano começa a abrir-se, lentamente…

Há dias em que queria ser caracol, tartaruga, búzio, levar a casa às costas e poder fugir para um qualquer ventre e deixar o tempo passar. Esquecer a Gilda. Ser apenas eu.


The End



Escrito por Hipátia, Voz em Fuga

5. Estou sim? Deus?, de Marte



[AW] - Aqui tens. É um presente meu. Sei que lhe darás bom uso.
[JMD] - Um telefone Dourado?
[AW] - Sim e o melhor é que tem uma linha directa para Deus. [Dando um gole do seu Dry Martini]
[JMD] - Uhmmm... estou a ver... Mas o que é que eu poderia ter para falar com Deus?
[AW] - Descobrirás com o tempo. Mas também não precisas de te preocupar com isso. Tens todo o tempo do Mundo. És imortal. És um Deus. És um mito. Não existe tempo para os Deuses...
[JMD] - [Risos] Tudo bem. Muito obrigado pelo presente. Tentarei dar-lhe uso.

[Deserto nos arredores de Los Angeles] [Mustang preto descapotável] [Telefone Dourado no banco do pendura]

[JMD]- Aquele gajo é mais alucinado que eu... uma linha directa para Deus... sim pois... [tentando sintonizar o rádio] Maldito rádio! [dá-lhe um murro].

[Começa a chover...] [Background music: Riders on the Storm]

- Se calhar devia telefonar para Deus e pedir-lhe que parasse com a merda da chuva... vai lixar-me os estofos do carro, para não falar do meu cabelo. Melhor, devia pedir-lhe antes umas asas para voar por cima das nuvens, por cima de todos até ao topo do Mundo. Yeeeahhh... [Pausa] mas se ele nem se quer conseguiu salvar aqueles pobres Índios Shaman... ou se quer conseguiu impedir que um corpo com 5 anos de inocência tivesse de assistir a tamanho banho de sangue, de vida a escorrer pelo alcatrão negro... Talvez pedir uma asas, seja demais.

[Dá umas passas num charro que entretanto enrolou, à primeira pausa da chuva]

- "This is the best part of the trip... this is the best part... that I really like... yeahh..." Se ele tivesse impedido aquela colisão, hoje não seria assombrado pelo Deus Fantasma que me persegue, que me alucina... não teria sobre o que escrever... não seria reconhecido...

[Pausa para uns bafos e uns goles valentes na sua Jack Daniels]

- Também para quê. Só me reconhecem pelo meu corpo, pelo meu peito bronzeado, pelas minhas calças de cabedal... pelo meu car***o e não pelo que escrevo. Todos me querem chupar... sugar-me a alma... até ao último centavo e depois roerem os meus ossos até me transformar em pó e me juntar aqueles pobres Índios... Hey DEUS????? [Grita, pegando no telefone] Estás aí? Eu sei que estás... [Pausa] Que tal planearmos um Homícidio... ou começar uma Religião... [Bebe o que resta da garrafa de seguida e atira-a para a berma da estrada] Cabrão de merda... Vai-te lixar... "I am the Lizard King... I can do anything..."

[Seus olhos fecham lentamente]
[Abre-os subitamente e vê dois faróis incidindo na sua direcção]

- MERDA! [Dá uma guinada no volante e despista-se contra uns cactos à beira da estrada batendo com a cabeça no volante]
- Ouch... Tás a olhar para onde estúpido? [Olhando para o telefone que estava ao seu lado] Já que não me ajudaste podias ao menos ligar para um reboque nos vir buscar... Aqui tens... [Atirando uma moeda contra o telefone] Isto deve chegar para pagar a chamada...

"This is the...... End. Beautiful friend..."



By: Marte P#$% da Loucura e Amor & Guerra

Cena baseada na história de James Douglas Morrison, e no seu célebre encontro com Andy Warhol que lhe ofereceu um telefone dourado, que Jim aceitou mas deu a um indigente assim que se viu na rua. Se ele tivesse ficado com o telefone talvez fosse este o resultado final...
Desculpem alguma linguagem mais "feia"... mas teve mesmo de ser. Usei também algumas frases/versos célebres de Jim.

Dia 4 - V Edição Actos de Cinema

Sumário no Divas & Contrabaixos

março 30, 2006

Dia 3 - V Edição Actos de Cinema

Sumário no Divas & Contrabaixos

4. (sem título), de J.P.



Olhos esbugalhados, no peito arquejante as mãos crispadas. E, ora corria ora caminhava muito hirta, fixa num ponto preto adivinhado de longe. A água gelada fustigou-lhe a cara e nem sentiu. Saia levantada sobre o corpete, os colotes ensopados em sal e areia, e aquela vontade enlouquecida e férrea de prosseguir, na recusa da perca daquele bocado de passado.
Estacou no agora o tempo parado, respiração e gestos controlados. Ajeitou a saia preta, passou os dedos sobre as madeixas descompostas, e deixou as ondas lavarem-lhe as mãos presas de alma, enquanto os pés se tornavam suavemente parte de areia como partículas polidas de universo.
Tocou ao de leve o pé do piano, e deixou-se levar nas patas das Fragatas, planando sobre os penhascos esverdeados. Seria então quando as nuvens lhe tocassem o olhar, que se deixaria cair. Sabia-lhe bem a brisa molhada, o som das asas embalado em forma de pernas deitadas e quentes, entrelaçadas. A vontade de manter as pálpebras encerradas, a vontade de as abrir. O aconchego dos linhos com cheiro a ferro quente de carvão, as Prímulas delicadas no jarrão, os pés de ervilha na janela.
Contemplava as cercas novas, o medo e a curiosidade de menina, que já fora, mas que por dentro nunca cresceria, segredo só dela emudecido em forma de palavras que se recusava a dar a escutar. Arfou um pouco mais entontecida, e o ponto preto lá no fundo a ficar desfocado, entre o limbo acusador do consciente e do inconsciente.
Deixou-se escorregar, enrolando as algas na passagem, de encontro ás vagas que lambiam a praia, rastos de dedos na areia ensopada, o vestido casco escorregadio, uma mão que volteia à procura do ocaso, o pé do piano encontrado, o corpo carcaça fendida inerte e enclavinhada.
Içou-se devagar, o lado esquerdo do coração a dizer que sim, o outro lado que não, e devolveu ao mar lágrimas sem som, agora rio luminoso em fim de dia.

J.P.

março 29, 2006

Escrever sempre foi um desespero da alma

Ah. Escrever sempre foi um desespero da alma. Ah as palavras dançando harmoniosamente ao som da vida. Está tudo lá. Tudo lá. Decidi que escrever passaria a ser um acto tão egoista quanto possível. Não quero mais saber de fama.
As minhas desculpas pela invasão vergonhosa deste espaço e
eventualmente
do vosso tempo.

Wilson T

3. (sem título), de Pirata Vermelho

“The horror...” “The horror...”
O cheiro de terra molhada e escura, envolta em neblina quente, acentuava a expressão divina. O sangue borbulhava-lhe na garganta, aberta à frente, marcando o tom grave e arrastado do que dizia e matando-o devagar, num misto de sufoco e pasmo.
De repente pôs-se de pé e fazendo cessar o engasgo que lhe misturava as palavras, interrompeu o que restava de Conrad, olhou em transparência o soldado-carrasco e exclamou ‘You are a hero, boy!’; apanhou-o pela garganta seca por dentro, num aperto metálico, prolongado mas sem estrebucho e estrangulou-o sumariamente sem olhar a alteração; só com uma mão, na inércia que tolhera o iniciado semi-deus, filho de plebeu, apenas semi-vivo num estupor insuportável.
Fora, ali dentro, a profundidade da floresta densa acolhia o tom cavo da elegia de um povo eterno dedicado à matança.
“Mistah Kurtz, he dead”, ouviu alguem dizer, sentado na pedra da porta de uma casa mais antiga do que tudo o que tinha sido seu, cuja memória só agora começava a fazer História. Então prosseguiu, certo e determinado,
"I took my place opposite the manager, who lifted his eyes to give me a questioning glance, which I successfully ignored.”


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Um ‘acto de cinema’, feito de uma sequência de "Apocalypse Now", de Francis Coppola.
Citações de "Heart of Darkness", de Joseph Conrad.
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-Pirata-Vermelho-

Dia 2 - V Edição Actos de Cinema

Sumário no Divas & Contrabaixos

2. (sem título), de Fatyly

(...) Tudo isto...para te deixar a minha encenação que punha os actores malucos e sobretudo a sobreposição do antigo com o mais recente...já que foram os que me preencheram a alma.

Título não tem...os filmes não digo, mas descobrirão e se for preciso(...).


De mãos crispadas no volante da sua Harley, olhar fixo na estrada seguia sem sentir a chuva que caía copiosamente. Na mente bailava aquele corpo que tão bem conhecia e que percorreu vezes sem fim! Um breve trejeito com o cruzar de outros faróis, transformou-se num sorriso ao lembrar-se da sua voz, das suas mãos, da sua boca.

Olhou o conta quilómetros e de novo agarrou-se à sua enorme vontade: tê-la de novo.

O dia despertava e a chuva parecia não incomodá-lo. Na mente o mesmo pensamento – ela, ela, ela e a interrogativa do sim? Ou não? Parou na berma da estrada. Aconchegou o blusão e de mãos nos bolsos deu alguns passos p’ra lá e p’ra cá...sim? ou não? Numa luta de dias, de horas!

Passou a mão pelo cabelo como saturado de tanta incerteza de sua autoria, quando a tinha deixado sem qualquer explicação. A chuva não lhe deu tréguas e deixando um trilho na lama... fez-se de novo à estrada.

Sete da manhã acordou com o toque do farol. Estava frio! Sabia que seria mais um dia de trabalho, mais um dia sem o ver, mais um dia preenchido pelo barulho infernal daquela fábrica! Puxou a t-shirt p’ra baixo. Enrolou os cabelos, prendeu-os com um lápis no mesmo ritual, sem tirar os olhos da janela. O mar estava crespado e a chuva caía. Saltou da cama e foi tomar um duche. A água do chuveiro aconchegou-a como tantas vezes o fez aninhada no corpo dele. Levantou o rosto e deixou que o chuveiro lhe lavasse a alma, de olhos semicerrados chorou. Fechou a torneira, enrolou-se na toalha e vestiu-se, sem parar de sentir o olhar atrevido mas tão meigo que vinha da cama, olhar que a intimidava mas que tanto amava.

Encostando-se à janela, trincou a torrada e sorveu a chávena de leite! Sabia que seria mais um dia de trabalho, mais um dia sem o ver! Foi trabalhar!

Já na fábrica, de macacão vestido e de boné vermelho, não sabia andar, saltitava! Sem mostrar a alma, mostrou o seu BOM DIA com quem se cruzava, como se o cumprimentasse a ele, só a ele e para ele.

Olhou o relógio, oito e trinta. Já estaria a trabalhar. Sim? Não?

Desligou a torneira, embrulhou-se no seu roupão branco e ainda quente voltou-se a meter na cama deitando-se de lado, com a cabeça apoiada na mão...como era linda até no dormir mas reparou nas lágrimas que caiam dos seus olhos. Meigamente puxou-a p’ra si, abraçou-a cruzando as suas mãos nas suas costas... não chores meu amor! Abriu os seus belos olhos castanhos, sorriu, passou-lhe a mão pela cara ainda húmida os dedos pelos cabelos grisalhos...e sussurrou...foi um pesadelo.

Então...”Dança comigo”...e a chuva tamborilando nos vidros da janela entoou a melodia dos seus corações como a dizer...um bom fim de semana!



FIM

março 28, 2006

1. a morte de olhos abertos, de Ivar Corceiro

















Um corpo nu entardece na ponta nervosa de um cigarro. Linda mastiga sorrisos e depois diz-me que posso dormir com ela. Dormir mesmo, insiste, que sou o último desta noite, a não ser que apareça um taxista em fim de turno, e encosta-se para trás sobre o sórdido divã. Os seios abatem em godé e servem de cinzeiro a algumas cinzas esvoaçantes. São borboletas, penso antes de perguntar o que é que eu sou em último esta noite, que gostava de saber como ela chama aos clientes. Mastiga mais um sorriso, e diz que a morte de olhos abertos. Nós somos a morte de olhos abertos. Tenho um selo nas cuecas que paro de vestir. É desconfortável a pessoa com quem fizemos sexo chamar-nos morte quando ainda estamos a vestir as cuecas. Talvez não me apeteça dormir aqui.
Acabo o uísque que Linda me serviu quando cheguei. Serve-me sempre um uísque quando chego, talvez para que alguma doçura faça também amor connosco. Pouso o copo ao lado do cadáver duma maçã oxidada pela noite, e acabo de me vestir: as cuecas, depois umas calças frias, depois uma meia rota e uma boa, depois uma camisa e uns sapatos que resistem a calçar os pés. Enrolo ainda uma gravata que guardarei num dos bolsos do casaco. Sinto-me mais nu que Linda, assim vestido, e ela pergunta-me se não fico. Que não, minto, que tenho muita coisa para fazer. Linda abraça-se em posição fetal. Então que me vá embora já.
Menti-lhe e ela sabe que eu sei que ela sabe que lhe menti. Isso mesmo. Não tenho nada para fazer. Apesar de nunca lhe ter dito acho que também sabe que nidifico ainda num casamento cansado, num emprego cansado, num corpo cansado. Ela estimula tantos corpos como o meu que tem que saber. A morte é só uma. Só tem um corpo. Acho. O que Linda não sabe é que lhe dei todo o dinheiro que tinha como pagamento, que vivo do outro lado da cidade e não tenho maneira de apanhar um táxi, e que na verdade até precisava de dormir aqui. Visto o casaco e guardo a gravata no bolso. Tenho que ganhar tempo. Pergunto se quer que eu limpe a bacia com água que está no chão, aquela que serviu para ela me lavar o falo quando cheguei. Que não, expele. Que me vá embora. E vou. Sou uma morte serôdia, talvez.
Um homem pálido estaciona um táxi parcialmente sobre o passeio, na diagonal. Talvez esteja bêbado. Sai e manca até um quiosque no meio da avenida, no meio da noite, no meio duma enorme ausência. Que quer uma cola qualquer, e prolonga o olhar e as palavras sobre a empregada. Ele não está bêbado, está só triste, está só só. Eu aproximo-me e ele afasta-se, mas sem medo. Também sem expressão. Talvez sem nada, só uma cola de lata numa mão. Ela agradece, que a noite anda muito perigosa, e eu engulo a discordância. Anda, anda. Posso dar uma olhadela num jornal? Diz que sim. E eu leio que aumentou a violência com prostitutas de rua, que vários homens se acham o ideal próximo presidente do país. Fecho o jornal, que chega.
Daqui vejo a janela de Linda. A luz ainda está acesa e sua sombra ondula nas cortinas. Deixou a posição fetal, deixou-se nascer outra vez para o resto da noite. As minhas mãos agarram o jornal fechado, os meus olhos esvoaçam até ao corpo nu de Linda, as minhas pernas movimentam-se involuntariamente. Volto atrás, sou um cão fugido do dono. Subo as escadas que me elevam ao céu. Bato três vezes à porta com os nódulos da mão direita. Ela não abre e bato mais três vezes, com mais força. Agora abre. Parece-me mais velha do que há cinco minutos atrás. Vou trocar a água da bacia, diz ela enfastiando a voz. Que não, que afinal quero dormir ali. Só. Os olhos verdes de Linda socam-me, e é estranho, que uns olhos verdes deviam ser incapazes de socar alguém. Que entre, diz-me enfastiando mais a voz, mas que durma no sofá.
A sala é uma espécie de jardim estéril, Linda é uma espécie de magnólia seca, a noite é uma espécie de jardineira embriagada. Alguém bate de novo à porta três vezes, mas não sou eu. É o taxista, grita Linda, e não chega a abrir que ele força a entrada. Tem o cabelo rapado dos lados e uma lata de cola numa das mãos, tem uma pistola na outra. Só não trouxe palavras. Substituiu-as pelo ódio e angústia que traz no olhar. Aponta-me a arma e dispara. Vou morrendo devagar. Sou a morte de olhos abertos. Obrigado. Acho eu.

Baseado no filme "taxi driver", de Martin Scorsese [1976]. Por Ivar Corceiro.

Ciclo Grandes Homenagens - I. The Tramp, por Hipátia


aqui


Um bigode pequenino, um casaco apertado, umas calças largas, uns sapatos enormes, uma cartola estafada. Um olhar cândido e um sorriso. Um corpo franzino. Ai está: the tramp. Silencioso, sempre silencioso. Tão silencioso que recusou o avanço do sonoro durante mais de uma década. À sua volta, todos falavam já. Mas o pequeno vagabundo, o mais pobre dos pobres, não enchia os seus filmes com o som das palavras. Enchia-os de música. Música belíssima, para enquadrar cada sentimento com a expressão magnífica que não necessita de tradução. Tão grande a emoção que se lê na ligeireza dos corpos, na profundidade dos olhos, na gentileza de um perfil. The tramp. Charlie.

Charlie Chaplin apresenta-nos uma das primeiras vozes discordantes sobre as venturas do progresso. O pequeno espezinhado que nem um cigarro pode fumar sem que, em grande écran, lhe surja a imagem do patrão, qual Big Brother, remetendo-o de volta para o seu trabalho de rotina, a prisão dos gestos repetidos até se transformarem em reflexos espasmódicos, uma doença. E os ricos ficam mais ricos e o pobre vagabundo, rodeado de muitos pobres vagabundos de uma época de recessão, enfrenta a miséria maquinizada. Um senhor, tão grande que enfrenta a fome e a prisão, que se enfrenta a ele mesmo no ring de boxe, numa coreografia de murros contra o destino. O destino da pobreza ao toque do gongo. Não por ele: para arranjar dinheiro para a sua amada. No fim ela vê. E vê-o a ele, ainda que, mais do que os olhos, seja o toque da pele que reconhece, enquanto olha para aqueles imensos olhos cheios de pena, de dor e de esperança. Em silêncio ainda. E a música por trás. O vagabundo que parte sempre a caminho do destino, com uma bengalada no ar. Mais vagabundo hoje do que nunca, comendo atacadores para mitigar a fome, sem perder a esperança num novo dia.

O bigode. O pequeno bigode que abandonou depois de muitos anos. Matou-o com o som, levou-o apenas para um filme ainda, numa caricatura visionária ao que vozes endoidecidas do outro lado do Atlântico prometiam ser a redenção da raça. Será que Hitler alguma vez viu "O Grande Ditador"? Será que se reconheceu no ridículo da figura embigodada que dança aos pontapés ao mundo?

E os olhos. Grandes, aguados, cheios de ironia. Mas também cheios de uma vontade de pôr no celulóide o melhor de si: a criança que sobreviveu à fome, mas que não soube sobreviver à abundância, transporta para o mundo dos sonhos a esperança que perdeu algures. Os olhos estão lá ainda. A preto e branco. Claros, esclarecidos, cheios de fome por um mundo que não compreende ou, talvez, compreenda bem demais. Ficam em close-up, encarando o seu amor, ao som de música. Bela música. Música iluminada que nos enche de promessas de um dia, um qualquer dia, que será melhor.




aqui


Limelight - Charlie Chaplin

V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema


L'image-mouvement e L'image-temps em particular - ajudaram-me a perceber alguma coisa dos actos de cinema: do que vou fazer ao cinema e do que o cinema faz. Em que consistem estes actos? Consistem, digamo-lo com Deleuze, em "cortes que adquirem valor absouluto". Vou lá fazer cortes e o cinema faz cortes, ele que é feito de cortes. Que cortes são esses? São "blocos" ou "cristais" de tempo, quer dizer, de pensamento e de vida, a cujos actos podemos chamar: enquadrar, interiorizar, exteriorizar, simultaneizar, intensificar, (...). Mas é evidente que cada qual vive como pode: por isso, nem as imagens são (feitas) da mesma maneira nem se vivem da mesma maneira.

in Actos de Cinema - Crónica De Um Espectador,
Edmundo Cordeiro


As imagens de cinema têm esse poder extraordinário de criar sensações-pensamentos. Elas são sensações-pensamentos! Louco, o Escritor Famoso sugeriu-me que vos desafiasse a imaginar um acto de cinema... sem câmara. Diz-me que, de qualquer forma, os cineastas só se servem da câmara para a "suprimir".

Eu sei que é impossível escrever imagens sonoras. Mas peguem na vossa experiência mágica de ser espectador de cinema, e ofereçam-lhe o vosso acto de cinema possível. Sem audio-visual, como criar actos de cinema? Pensando imagem, amando imagem, esperando imagem, dirigindo os olhos.
Seleccionem o filme da vossa vida e acrescentem-lhe um novo acto. Envolvam-se com aqueles heróis de cinema que ousaram piscar-vos o olho. Façam-nos sair da tela, qual Cecilia na Rosa Púrpura do Cairo, para voltarem a lá entrar diferentes, ou mergulhem vocês no universo deles e deixem que eles vos transformem em radiação.
Imaginem realidades e imagens e fusionem-nas. Criem sentidos. Inventem diálogos.

Mas não esqueçam que se trata de um acto de cinema. A câmara fixa a personagem, de frente, de lado, de um ângulo de cerca de 45°, ou de costas. O olhar da câmara em relação com o olhar da personagem. Qual destes olhares será mais nítido? (a personagem pode sempre tentar furtar-se a que a expiem e captem)

Sintam-se livres. Experimentem. Mas criem (ou, pensando nas palavras de Manoel de Oliveira, recriem) o vosso Acto de Cinema de Autor.


O regulamento completo do Concurso será publicado brevemente. O Prazo para entrega dos textos-scripts termina a 9 de Abril (24h00). Os textos não poderão ter mais que 30 linhas (Fonte: Trebuchet, tamanho 12/normal).

Todos poderão participar (bloggers, não bloggers), podendo cada autor enviar 3 textos. Os bloggers que têm mais que um blogue, poderão usar diferentes nick names, mas agradecemos que respeitem o número limite de textos por autor.

Todos os concorrentes devem editar o seu próprio texto no blog O Escritor Famoso. A organização do Concurso será responsável pela uniformização da edição (e terá todo o prazer em esclarecer e apoiar aqueles que sintam alguma dificuldade). O login e palavra-passe são os mesmos: efamoso.

Nota extra: A organização ainda anda a pensar no prémio para o/s vencedor/es :))

Amigos, deslumbrem-nos!


Adenda: A organização deste concurso, considerando a petição que ilustríssimos amigos do Escritor Famoso subscreveram, aumenta para 60 o número máximo de linhas por texto

março 17, 2006

A V Edição está quase a começar



E se o Escritor Famoso tivesse andado a reflectir sobre cinema? - quem seriam os seus realizadores ou filmes preferidos? - por que personagem da tela se enamoraria?


Vão pensando nas respostas. E depois falamos ;)