agosto 29, 2005

And the winner is...

Vencem, mais uma vez, dois concorrentes, a Marquesa d'Aires e a Didas.

Parabéns!

agosto 24, 2005

Começou a votação

Vá, cumpram a vossa obrigação e vão votar! As eleições acontecem aqui. Até às 24:00 do dia 28 de Agosto.

agosto 23, 2005

Atenção!

Faltam apenas alguns minutos para terminar o prazo de entrega de textos.

E as votações estão prestes a começar no Divas e Contrabaixos...

26. Matei-te com o meu passado, de Japinho

Tu dormes. Enquanto tento encontrar explicação para o passado percorro-te com os olhos. És mesmo tu Helena. Tudo se confunde, pedaços da minha vida estão agarrados a ti, até na tua ausência consegui colar histórias nos teus olhos.
Como te amei num amor sem projecto.
Ver-te aí a dormir liberta-me. Para trás ficam memórias dolorosas que se matam, ver-te assim, deitada na areia, cabelos espalhados com o sabor do vento é bom para mim.
Como fui ingénuo, como acreditei nos teus olhares. Quando respondi à minha mãe, andamos de baloiço, não lhe disse o mais importante, já te amava.
Estar contigo era ser feliz e eu queria ser feliz. Contava as horas os minutos os segundos que nos separavam. E agora tu dormes, como se o passado, o meu passado, não tivesse existido.
Entendo que os teus olhares me estimulavam, libertavam em mim rios de amor onde as margens eram, caso a caso, os meus sonhos contigo. Só mais tarde entendi que não podia ser o teu amado, agora sei que não consegues amar ninguém. Com os mesmos olhos que me davam chama queimavas quem te desejasse. À tua volta desejo, será ainda hoje assim? Alimentavas paixão, giravam apaixonados e apaixonadas a quem nunca disseste, não vos quero.
Davas-te com um olhar ou uma frase cheia de segundas intenções e saías com um silêncio inesperado. Quando te perguntava, porque fazes isso? Porque queres ser fonte de desejo? Respondias, não faço nada disso, não tem mal nenhum.
Lembro-me da senhora da livraria, que te sorvia com os olhos, como ela te acariciava com palavras, como se deliciava com o teu jeito de não dizer sim nem não, tu com os teus olhos incendiavas-lhe a paixão. Como me magoavas, alimentavas a minha insegurança que ia crescendo sem eu saber porquê, eras feliz comigo? Serias? Bastava-te o meu amor? Agora sei que não.
Precisas de te sentir desejada, precisas que te amem que te envolvam em teias de paixão. Tu és o assédio.
Demorei anos até te ver outra vez, para te matar. Agora sim mato-te rapidamente, que a tua morte dói-me. Mato-te com os meus olhos enquanto dormes na praia junto ao paredão. Uma a uma as minhas dores vão sendo apagadas. Vejo-te linda. Vais morrendo e as minhas dores desaparecem.
Amo-te outra vez como no primeiro dia em que junto do baloiço te olhei e disse, gosto de ti Helena.
Agora sim, morreste. Matei-te com o meu passado.
Vejo-te aí deitada enquanto o teu peito se enche de vida ao respirar.
Caminho devagar com as ondas a baterem-me nas pernas, depois na barriga, agora no peito. Que mais posso esperar da vida se, assassino eu, te matei meu amor. A Helena morreu, fui eu com o meu olhar. Sigo em frente para o oceano, nada mais vai poder redimir-me da tua morte. Vou só sem o teu amor.
Ainda ouço uma voz vinda da areia que parece ser a tua Helena, mas não, não podes ser tu.
O mar é azul e bonito para morrer.

Japinho

25. O que disseram depois, de Palavras em Linha

Sim, era com ela que eu passava o tempo todo mas o que disseram depois foi o que quiseram dizer. Disseram tudo o que se quis ouvir e em tudo eu fui ouvindo, ao longo do tempo, versões várias de uma história que só eu sabia. Passávamos juntos os intervalos e todos já diziam que éramos namorados e às vezes atiravam-nos pedras – “olha os namorados”, “olha os namorados” – cantavam, e ela, envergonhada, baixava os olhos e depois erguia-os para mim, inquirindo-me sobre a verdade do silêncio. E era verdade, eu quis ser o seu namorado desde que ela nasceu daquela mãe que se sentou no lugar da minha, que se penteava no espelho onde antes eu via a minha mãe dizendo o meu nome. Aquela mãe que quis contar-me, depois, as mesmas histórias para adormecer, histórias que falavam sempre de bruxas más escondidas em quartos escuros, saindo a voar em vassouras velhas rumo à França. Antes tinham dito que a minha mãe me deixara a chorar nas escadas, que tinha ido embora ao fim do dia e que eu fiquei a acenar-lhe com a mãozita chorosa, num adeus quase até logo. Do que me lembro foi de ficar sentado no cavalinho de baloiço durante todo o serão, enquanto o meu pai olhava para mim. Mas não sei porque lhe conto isto. Só sei que quis ser o namorado de Helena, sim, para sentir que alguém me dava o afecto que ela me negou quando se despediu de mim nesse fim de dia.


Sim, lembro-me, ele passava todo o tempo com ela. Já foi há muito mas lembro-me muito bem de os ver andar de baloiço nos intervalos; depois começaram a faltar-me às aulas. Claro que era meu dever chamar os pais à escola, não acha? Mas não é verdade que tenham vindo logo. Se tivessem vindo talvez se pudesse ter evitado o que depois aconteceu. Mas há este hábito terrível dos pais adiarem as coisas que são realmente importantes. Reconheço que ele era um miúdo complicado, já nessa altura escrevia uns textos estranhos nas palavras e mais estranhos ainda nas ideias que deixava escritas. Coisas de adulto, pensava eu, de criança que cresce depressa demais. Mas não sei se pensava isso nesse tempo ou se só o penso agora, já que nessa altura as atenções se dispersavam sobre todas as coisas do dia-a-dia e ele era um entre os outros. Dizia-se que o pai o tinha rejeitado, desde o dia em que a mãe o deixara a chorar nas escadas. Talvez fosse essa a razão de todas as coisas. Ele era um miúdo complicado. Ela não. Ela destacava-se pela brancura da pele, pela maneira especial com que se afirmava, sem querer ser a melhor aluna. Mas era. Era toda sensibilidade. Toda inteligência. Helena era a beleza. Era tudo, Helena!

Sim, disseram-nos que eles passavam todo o tempo juntos e que faltavam às aulas. Mas só nos disseram depois. É claro que tudo se podia ter evitado se nos tivessem chamado à escola logo que a estranheza dos factos lhes chamou a atenção. Digo-o eu, Maria do Céu, mãe de Helena, que o pai nunca mais teve condições para falar ou emitir opinião. Não tente falar com ele, não vai adiantar nada ao que já sabe. E digo também que o pai costumava pôr a pequenita nos joelhos para lhe contar histórias, mas sempre que o fazia chamava-o também a ele; não é verdade que o tenha rejeitado, não é verdade que o tenha obrigado a ouvir as histórias sentado à porta da sala para não incomodar a serenidade da família, como se disse. Se isso aconteceu foi naquele dia em que ele despedaçou, uma a uma, as minhas violetas dispostas em vasos sobre o parapeito da janela. Ele era já um garoto complicado mas eu não fui madrasta, não, fui mãe, que a outra deixou-o a chorar nas escadas e foi para França.

Se ela me deixou a chorar nas escadas a culpa foi de alguém. De Helena, que quis nascer para me anular a existência? Talvez a culpa tenha passado daquela mãe para ela. Ambas inimigas. No baloiço eu sentia que ela era minha e a pouco e pouco prolonguei esses minutos até me encher do seu perfume e da transparência da sua pele, até sentir a tontura de todas as emoções mal contidas. Fraco entendimento de menino, disseram também, e eu não sei se tinham razão, mas quando lhe empurrava os ombros para que o baloiço se levantasse no ar e pairasse no azul do céu da nossa escola, tinha sempre a visão daquelas duas ruas de casario esboroado, de telhados baixos e janelas com postigos, entre uma encosta de socalcos e uma parede velha em cujas brechas nascera musgo. Era para aí que dava a janela emperrada. Tinha de a levar a esse lugar. Era lá que iríamos abraçar-nos, rendidos à cumplicidade dos nossos verdes anos. Era lá que tudo iria passar-se. Se faria o mesmo? Como é que a gente pode dizer se faria o mesmo? É tudo uma questão de ausência. Ou de uma presença forte sobre essa ausência. Disseram também que construí a minha vida de vinganças e essa pode ser a razão de tudo, incluindo este lugar onde me vêem, que é um lugar de desassossego. Não gosto de vasculhar no passado: em cada estrato, quando estamos a libertar-nos de coisas inúteis, como a areia e as pedras, escolhos que camuflam pequenos cacos, encontramos indícios, enigmas que não nos deixam dormir em paz sem que lhes adivinhemos um sentido. Não sei porque lhe estou a contar isto, talvez a minha história sirva para a sua história, para a sua escrita. Registe nela, com as palavras que eu deixei no passado, a face branca de uma menina que eu vi depois no caixão, de longe, porque já nessa altura a culpa me matou também a mim. Mas nada do que se disse foi verdade.

Palavras em Linha

agosto 18, 2005

24. Prólogo a Helena, de Prólogo

Na prosa que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena iria constar um instante, demasiado curto mas intenso, em que me perguntou se sabia de uma maneira simples de chegar ao céu. Ter-lhe-ei dito que não sabia, mas deveria haver um processo metódico e racional em que, com tempo suficiente e recursos adequados, se poderia fazê-lo.
Antes de tudo falamos daquilo que não sabemos. Explicamos com todas as letras o desconhecido, damos o nome às coisas que não existem e fazemos disso uma boa ocasião para parecer que nos parecemos com alguma coisa. Não fosse isso a vida e pareceria dramático.
Nessa altura, porque foi há muito tempo, as palavras ainda não eram as de hoje mas já contavam histórias impossíveis e verosímeis juntamente com outras em que os números substituíam, com vantagem, a argumentação e a fantasia.
Há sempre alguma injustiça nas palavras, as que são como pedras arremessadas com ódio e as que são pedras deixadas cair como se fossem palavras sujeitas à gravidade das massas imensas, pedras no rim torcendo o corpo incompetente para se regular e irregular na função de se ler a si próprio e voltar de novo às palavras que inventou.
O que me atraiu a mim e a Helena ao baloiço livre do intervalo das deduções e que eu tinha intenção de escrever para assim escrever a fama que vem de longe, do ponto mais alto a que o impulso combinado dos pés e do sonho leva o corpo; o que nos atraiu na força natural que atrai os corpos para as suas proximidades menos evidentes foi, provavelmente, o magnetismo do ferro igual que nos circula nas veias.
No texto que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena e de mim e das coisas menos comuns que aproximam os afectos iria falar da nossa surpresa quando os nossos pais foram chamados à escola por causa das nossas destemidas ausências no parque. As nossas mães eram duas mas o pai era só um...

Prólogo

agosto 17, 2005

23. Helena, de Sísifo

São várias as maneiras de sentir a força da gravidade.
Todas elas vêm do mesmo lugar de onde vem desde sempre a vida.
Há um acordo secular, milenar talvez, que assegura a persistência de cada uma delas.

Se nos déssemos ao trabalho - se houvesse tempo para isso - de olhar para o modo sério como as crianças brincam, perceberíamos que essa vontade do autêntico se esgota logo a seguir.
Porque logo a seguir a gravidade passa a ser como o céu ou a noite: apenas o que tem que ser.

Olhar com atenção para o vento que leva o cabelo quando o nosso corpo é o pêndulo que faz o ritmo definitivo das sensações, deixa de ser possível sob a chuva de pedras da interpretação.

Venha então esse sonho, agora que já não o sei ler.
Cheguem aqui ao pé do gesto que já se perdeu.
Ouçam o que resta do riso, nesta clausura a que os deuses tudo condenaram.
Toquem ao de leve na poeira que se aconchega na ternura quente do corpo terra.

Não haja ilusões.
Estamos todos à espera.
À espera de outra coisa que não esta.
À espera que o rosto contorcido da autoridade nos diga outra vez que sim ou que não.
À espera de outra coisa que não as que já sabemos impossíveis.

É assim a memória da liberdade: fugaz e distorcida.
Como tudo o que já não é.

Mas estou sereno como Helena.
Pêndulo de Foucault de guarda à marca da mobilidade das coisas paradas.


Sísifo

22. Maus pais, de Lino Centelha

Se procurarmos com a devida persistência, encontramos sempre uma relação causa-efeito entre dois acontecimentos separados no tempo mesmo que aparentemente não tenham nada a ver um com o outro. Encontrada essa relação é quase imediato deduzir uma fórmula matemática que descreve o fenómeno e a partir daí temos uma descrição que permite com toda a exactidão fazer previsões sobre o futuro das diversas entidades envolvidas.
As transformações de Lorentz permitem, já ao nível da relatividade restrita, justificar a dilatação do tempo quando se anda de baloiço. Talvez fosse um pouco exagerado passar meia hora para uma hora mas talvez eu não tivesse na altura a instrumentação adequada. Recordemos que éramos ainda crianças. E medir tempos com precisão é um assunto que envolve ainda hoje grandes polémicas entre os especialistas.
Quando eu disse à minha mãe que andava de baloiço com a Helena estava, evidentemente, a dizer a verdade. Embora eu tenha que reconhecer que ela não merecia. Foi muito penoso para mim terem chamado os meus pais à escola. A Helena também não gostou. Nunca se tinha falado num caso daqueles: pais chamados à escola por mau comportamento. Nunca se percebeu muito bem o que é que eles tinham feito de errado. A Helena achava que eram eles que tinham andado a rir-se e a atirar pedradas. O que para uns pais não fica nada bem. Mas eu acho que eles fizeram qualquer coisa mais grave. Talvez fossem actividades políticas ilícitas. O meu pai não era do Benfica e isso dava sempre problemas.
Depois disso a Helena deixou de ir à escola e eu passei a ter mais tempo para a matemática.

Lino Centelha

21. A Helena, de Ivo Cação

Por causa de Helena fez-se uma guerra. Foi há muito tempo e sabemos como o tempo transforma em caldo uniforme as mais díspares impressões de viagem. Ao tempo brincávamos com baloiços, automóveis de corda, cavalinhos. Coisas que roubávamos aqui e ali sempre com as angústias recolhidas no quarto mais escuro da casa e deixando que apenas o vento fizesse rodopiar o cabelo sobre os ombros e sobre a realidade.
Nada mais queríamos que construir uma civilização, embora não fosse bem assim, porque ninguém se levanta manhã cedo com a intenção decidida: hoje vou construir uma civilização. Não que seja ridículo. É tão ridículo como acordar de manhã e pensar: hoje vou descobrir porque amo assim Helena.
Nem de propósito, hoje, enquanto fazia a barba, e reparem como as palavras são estranhas porque o que eu estou a dizer é que rapava a barba com uma lâmina - quase o contrário de fazê-la, pensei que era um dia bom para esclarecer de vez porque me apaixonei, e temos que o dizer, eternamente, por Helena. Porque não há pais, nem mães, nem professores, nem destino, nem deuses que nos impeçam de amar aquilo que um mecanismo interior qualquer decide que havemos de amar. Dizer que era no intervalo das aulas que eu amava Helena, enquanto brincávamos e ela na sua cautelosa essência de vencedora definitiva me levava, pela mão, pode dizer-se, para os lugares ocultos onde qualquer ingenuidade ou sapiência se afunda em perplexidade e surpresa.
Volto a Helena sempre que posso. Pego nos restos e nos rastos e reconstruo os momentos que puderam ser infinitos e que ficaram enquanto eu for.
E porquê? Porque eu sou, afinal de contas, o encobrimento directo dessa incerteza, por ter Helena e olhá-la da maneira única que eu próprio fui. E acabamos por amar os sinais que se inscrevem na nossa pele porque são eles que nos fazem discerníveis de tudo o mais. E há os momentos que ficaram sobrepostos à exemplar certeza da descoberta, aquele momento em que deixamos de ser o mesmo que éramos e julgávamos eterno.
Helena estava lá, baloiçando no momento certo. Ou eu e os meus sonhos. E quase tudo o que veio depois.

Ivo Cação

agosto 11, 2005

20. Conta-me...., de Hipatia


(...) Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi. (...)



E agora que envelheci, meu amor,

Conta-me!

Conta-me o que se calou ainda.

Conta-me a memória, os sorrisos, a doçura.

Põe a música certa a tocar e conta-me:

Conta-me o sentido, o racionalizado,

Conta-me das histórias que escreveste,

Como foram os equilibrismos da vida.

Faz-me um desenho, uma pintura.

Diz-me como estava o céu,

Como brilhavam as estrelas,

Como já se ia embora Vénus

E a aurora raiava o negro de rosas e amarelos.

Diz-me como foi o dia,

O dia de ontem,

O dia de hoje,

O dia em que brincávamos no baloiço.

Aquece-me daquele mesmo sol.

Conta-me das metamorfoses, dos crescimentos,

Dos pés já doridos, dos sonhos acordados.

Conta-me!

Não esqueças nem um pormenor,

Um pensamento, um fio.

Conta-me...

Preenche cada espaço, soletra cada letra.

Não te enganes nos ondes,

Nos quandos, nos porquês.

Mas conta-me!




Recorda, agora, Escritor.

Conta à tua Helena tudo o que ela já começa a esquecer.





Hipatia

Voz em Fuga

agosto 09, 2005

Alteração de Datas

A pedido de vários bloggers e porque o próprio júri anda desencontrado devido ao período de férias, vamos alterar as datas fixadas inicialmente para este Concurso. As novas datas são:

Limite de entrega de textos - 23 de Agosto (24:00)
Início da votação (eleições abertas) - do dia 25 ao dia 28 de Agosto (24:00)
Divulgação do Vencedor do Concurso - dia 29 de Agosto

agosto 08, 2005

19. Memórias de um génio, de Joaquim Pavão

Traquejo é o que possuo. É um inútil quem to diz. Mas ele? Nem pena já usa; botão branco ainda sujo. Corre num funil, a mula de duas palas. Acaba o que faz e fuma um cigarro. Consumação frustrada. A cada baforada sente o enjoo. Quer mais. Sentia-lo querendo mais. Como Enxofre que se agarra ao casaco, afastava-lo aos poucos, mas a gravidade devolve-me restos. –“O cão gordo da vizinha ia te adorar”.

Traquejo meu velho, traquejo do duro. Sinto-te angustiado. Não estavas à espera? Ajudaste-me e compensei-te. Do que tens no bolso não levo uma migalha. Os vermes limparão os ossos mas não gastarão nada, meu Iscariotes. Fundo, bem fundo. Quero-te mais fundo ainda. Quero que respires a cada milímetro que desças. Não te preocupes. Eu tapo-te bem. Uso a tua terra. Como estrume por cima da terra, o teu cheiro inunda-me sempre que o vento muda. –“As sementes suspirarão por ti”.

-“Boas tardes. Como vai o meu editor do peito? Como sempre te digo, consegui. Mais um. Sinto que este vai ser muito melhor. Mais um ponto de viragem na minha escrita (…) ”

Tiro a capa e coloco outra. Assino em voz alta –“Apurando o génio por (…) ”. Preciso de um cigarro. Oiço tocar na porta. Pelo bater é mais um. Conheço o som da ambição, da ilusão. –“Entra (…) ”. A baforada some-se e quase sinto que os joelhos deste vão bater no chão. –“Ensinar-te, pedes-me tu”.

Traquejo, é o que é preciso para escrever. Aprender comigo? Aqui tens uma resma, mais outra quando acabares essa, logo a seguir outra. –“Traquejo, meu velho…”


Joaquim Pavão

18. Com Saudades de Helena, Marquesa de Aires

E Helena? Não sei o que disse à mãe, que explicações encontrou. A última vez que andámos de baloiço, tinha os olhos pregados no chão e um aperto na voz. O pai, que sofria da febre do sucesso, estava decidido a partir para África e levava a família. A carta de chamada, enviada por um tio de Joanesburgo, pousava sobre o aparador da sala de jantar, prometendo a todos um futuro melhor. Uma máquina de lavar roupa para a mãe, uma bicicleta para o irmão e a colecção completa dos livros da Anita para Helena. A mulher que não esqueci, que me fez desembarcar nesta cidade sitiada, era, aos 10 anos, uma miúda de sonhos simples. E o meu coração sobressalta-se, agora que deixo o aeroporto e avisto, ao longe, os edifícios fantasma do centro. Temo pelas minhas memórias, pela ternura desse primeiro amor. Os anos, e são muitos, podem ter engolido a rapariguinha tímida, de olhos rasgados, cabelos escuros e ondulantes. Quem sabe que rumos tomou, se mudou a cor do cabelo e enfiou nos dedos anéis de ouro. No bolso do casaco, tenho um endereço e um número de telefone. Mendiguei-os à família, a pretexto de uma viagem de trabalho. Não quis saber mais.

Helena não regressou quando o medo tomou o espírito dos emigrantes e transformou as ruas em lugares desertos. Por algum motivo, não fugiu, não se escondeu das armas e das balas, cujos ecos se ouvem assim que entro no hotel. Do outro lado, estende-se Alexandra, nome de mulher para um bairro onde convivem todas as sombras que atormentam as pessoas de bem. Roubos, homicídios, violações, SIDA. Aqui, na cama do meu quarto, o conforto impede-me de pensar sobre o destino dos desafortunados. Vim atrás de uma menina de 10 anos que me dava a mão e fugia comigo para o parque, no intervalo maior das aulas. E é essa a imagem que me enche a alma, que me faz tremer os dedos. Não sei que voz me responderá do outro lado. Apenas peço que seja meiga, que guarde alguma lembrança da infância. Sinto que as palavras me fogem quando oiço uma mulher rir-se no fim da linha, como se estivesse à minha espera. Ou é o coração que me engana, a emoção que me atropela a razão. Todos os tons, todas as inflexões, os risos e as gargalhadas da conversa de 10 minutos dançam-me na cabeça. Helena não se esqueceu.

No bar do teu hotel, disse ela, antes de desligar. E cá estou, afundado numa cadeira, com um uísque duplo à frente, incapaz de ouvir a música que se toca no piano. Nem sei quem espero. Uma trintona desleixada, uma mãe de família ou uma rapariga como a que acaba de entrar, de cabelos soltos e andar gracioso. Baixo os olhos para tentar ler algumas linhas do livro que trouxe e convencer-me do pior. Nenhum amor permanece intacto durante 25 anos. Ou se perde o sentimento, ou ganhamos nós barriga, cabelos brancos. Não o escrevi e disse já, vezes sem conta, nos livros e nas entrevistas? O amor é o momento, a circunstância, a disponibilidade. Não as ilusões de um escritor, homem feito e, dizem, bem parecido que, aos 35 anos, decide tirar a limpo uma história de mãos dadas e lanches partilhados. E apesar de todo o sentido prático dos meus romances, sou eu quem espera pelo passado, com o peito agitado e trémulo de um adolescente. Espero um sorriso cheio de covinhas e quase não reparo que, no fundo da sala, a rapariga de cabelos soltos e andar gracioso me acena.

A mulher à minha frente é linda. Tal como prometia ser. Um olhar onde cabe toda a paz do Mundo, um modo de cruzar as pernas que dá vontade de abraços e beijos. Um sorriso com covinhas, uma voz com travo africano. E eu a gaguejar desculpas para a viagem, a falar dos meus livros, do muito tempo que passou. É Helena quem puxa o assunto, quem fala do nosso namoro inocente. Dos cromos que trocámos, dos gelados de um escudo que partilhámos e do teste de matemática que me deu a copiar. Sorri quando conta que, tantos anos no país do râguebi, do críquete e do hóquei em campo, continua a preferir o futebol. Anda, como todo o povo, feliz com o Mundial, acredita numa nova esperança. E, aos poucos, vai revelando a sua vida, os seus dias, a sua paixão. Não é uma família ou um homem que a tem cativa. É a terra. A imensidão do espaço, o pulsar dos dias, a poesia que se extingue a cada pôr-do-sol e o futuro que não existe. Os seus vieram com sonhos de grandeza, Helena chegou com mágoa no coração, sem desejos com preço em rands. A família partiu, depois, assustada com as mudanças políticas. Ela ficou, apaixonada pelo lugar.

Perdido nos olhos de Helena, lembro-me que vim para fazer uma pergunta, para saber que explicações deu à mãe, quando fomos repreendidos por mau comportamento na escola. Desajeitado, conto como disfarcei tudo com um simples «andamos de baloiço». Um largo sorriso nasce-lhe no rosto, sinto um certo embaraço, mas a miúda com quem andei de baloiço aos 10 anos não sabe mentir. Não esconde emoções, não me contará meias verdades. De olhos pregados no chão, um leve rubor no rosto, a mulher que não esqueci responde-me como o fez à mãe, há 25 anos: «disse que eras o meu namorado».

Marquesa D'Aires

17. Analepse de Verão, de Renato Quintas

Foi na minha boca que ela aprendeu a gostar de cerveja. Foi no seu corpo que aprendi a inocência ou regressei a ela como a um búzio.
Nenhum homem pode suportar, em voz alta, recordações tão intensas como a ternura em carne viva. Ou o amor por acontecer.
O que escrevo é para ela. Não para a Maria Helena desta noite. A do original. Mas a Maria Helena original, a de todas as noites desde aquele dia.
Ia ter com ela à escola de granito, portas vermelhas, escadas voltadas para o parque da vila. Sexo feminino, de um lado. Masculino, do outro. Já há muito tempo que eu lá tinha andado. E agora voltava para a namorar.
-Vem cá. Empurra. Com muita força para que eu possa tocar no ramo da árvore. Com muita força…estás a ouvir?
E sentava-se. Acomodava-se no baloiço, entalava o vestido debaixo das pernas; ainda em terra, colocava os pés em pontas, como se fosse bailarina.
- Já. Empurra! Com muita força. Se à noite vier andar de baloiço, aposto que consigo tocar com a ponta do pé numa estrela…
- E se não houver estrelas, nessa noite?
Já não me ouvia. Em pontas, ganhava altitude até tocar o galho da árvore.
Aqueles intervalos em que se escapava da escola, corria até ao parque em frente, eram já o pronuncio da sua personalidade calorosa. Da eterna analepse da minha vida.
Sempre soube que partiria, mas sempre me vi a partir com ela.
Quase mulher pedia-me a mão como se fosse a criança do parque de plátanos a contar os dias. Onde morava um baloiço e vive o sonho.
Ainda o vejo. Escuto o chiar do metal ao vento.
-Vamos passear.
Um dia pediu-me um abraço e pude sentir os seus seios, de leve, no meu peito. Como água a pedir sede. Beijamo-nos.
-Estava a ver que não! Tens de me ensinar a beijar. Foi muito mal?
Ela entalava-me, assim, como ao vestido, debaixo das suas pernas, no baloiço. Frontal. Nunca seria uma diplomata.
Intenso reencontrado. O melhor daquele beijo foi saber que o desejava. Como aos meus braços à sua volta. Como ao mundo, por ver.
O seu olhar um mar inquieto, esverdeado como o mar, há muito me trazia cativo. Preso ao desejo de a ver nua mulher.
Regressamos à vila. À esplanada onde o Outono chega mais cedo.
- Pede uma cerveja que a quero provar nos teus lábios.
- Primeiro, ensino-te a beijar. Sorri-lhe.
- Verão eterno. Verão a pedir arde. Quando pousas assim o teu olhar.
A tua cerveja…
- Leninha, que disseste à tua mãe, naquele dia?
- Maria Helena. Sabes que prefiro que me chames Maria Helena.
Já sou uma mulher e…
- E…
- E, esta noite, mesmo sem estrelas quero tocar numa. Com os pés em pontas, como se fosse bailarina. Entalar o vestido nas tuas pernas, sentar-me, como se fosse andar de baloiço.
O que disse à mãe não é importante. E o baloiço já nem sequer existe…
só a memória
…mas o teu sorriso continua quente no meu rosto
eterno verão a pedir arde.

Renato Quintas

16. Máquina do tempo, de Maria

Chamavam-nos “Caixas de Óculos” e outros nomes jocosos e gozavam-nos pelas palavras espartilhadas pelos aparelhos dentários. Riam-se a bandeiras despregadas com as piadas-pedradas que nos atiravam. Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi.

E o baloiço oscila ao vento, enquanto espera por ti. Enquanto espero por ti. Encerraram-me numa academia militar por causa do mau aproveitamento, porque só queria escrever histórias para ti e a nota de Português era a única que destoava naquela lista de negativas. Como me arrepiava quando tu me pedias, meio a sério meio a brincar: “Conta-me uma história!”. Passava os tempos livres ( e a maior parte das aulas) a inventá-las para ti, a viver antecipadamente o momento da narrativa e a fazer filmes contigo como protagonista.
Era o teu riso, era o teu riso quando andavas de baloiço, que me contagiava. E ríamos, ríamos como loucos, sem qualquer razão, e esse era o nosso escudo contra quem se ria de nós. Depois, quando finalmente vim de férias da academia militar, já não moravas nesta cidade e nunca mais foste passar férias a Tróia, onde admirámos mutuamente, pela primeira vez, as nossas lentes garrafais e os nossos “arames farpados”. Minha troiana...Já deves ter entretanto descoberto que adaptei para ti a história de outra Helena. Talvez tenha ficado beliscado o meu encanto de narrador, mas nota, talvez ela tenha sido a mulher mais linda da História, mas se não risse como tu eu nunca a convidaria para andar de baloiço!

E o baloiço oscila ao vento, enquanto espera por ti. Enquanto espero por ti. Porque a primeira coisa que eu quero saber é se ainda gostas de andar de baloiço e se ris como dantes. Se sim, tenho um monte de histórias mais para te contar, na primeira pessoa, se não, podes lê-las do mesmo modo por aí, em qualquer livro que publiquei, mas nunca saberás que foste a musa de todas e cada uma delas. Minha troiana, os baloiços já são outros, mas espero que sejas a mesma. Pelo menos, quando te perguntei ao telefone onde nos podíamos encontrar, foi logo este Parque que sugeriste. Eu só sorri, mas na minha alma ecoou uma gargalhada que se transformou em máquina do tempo. E eu estou aqui, baloiçando nas memórias, à tua espera.


P.S. Não sei se poupei trabalho ou se dei mais trabalho. De qualquer forma cá está! espero que tenham muito mais contribuições. Maria
Estórias do Bicho da Seda

agosto 03, 2005

15. O escritor famoso, de bastet

O mote:

(...)Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi.
E o baloiço oscila ao vento (...)

Nunca soube se era verdade o que dissera à minha mãe ou se, velada, seria a primeira cautelosa mentira que ensaiara. Era verdade que as horas balouçavam livres, mais livres que o balouço onde esvoaçava o vestido de Helena e que elas perdiam o vulgar sentido porque tocavam a eternidade. Não era por certo a verdade dos livros escolares, que ficavam arrumados em monte junto do escorrega amarelo, onde eu me estendia de braços erguidos desfrutando o sol e o guinchar monótono das correntes que sustinham Helena no firmamento. Via-lhe a biqueira dos sapatos de fivela azuis escuros a aparecer a espaços certos, compassados, por vezes mais apressados, quando Helena os apontava ao céu para tocar as nuvens. Eu já lá estava. Levitava-me do escorrega amarelo e sentava-me na nuvem maior. Esperava os pés de Helena e roubava-lhe os sapatos. Por cada vez que me chegavam ao colo arrepiava-os de cócegas. Certa vez prendi-os. Segurei-os com firmeza e sentei Helena ao meu lado na nuvem maior. Houve um instante de receio ou de clarividência. Os livros da escola não ensinavam a voar. E o peso da racionalidade apelava à gravidade, a lei que chama os corpos à terra desde a lenda da maçã. Pus-lhe os dedos nos amarelos fios de cabelo e os lábios abertos sobre os dela muito ao de leve, e de leve suspirei para eles, por eles, quase um sopro de velho cansaço pouco próprio da minha idade. Mas as horas não tinham sentido. Se passavam leves, passavam rápidas, trazendo a sabedoria do que não se troca, as letras de todos os livros onde se ensina o amor. E eu, precisava de Helena. Do cinzento de espanto que se lhe derramava nos olhos ao ver-se tão leve, sentada na nuvem maior. Da bruma carregada das suas sobrancelhas quando não percebia o mundo e as flores pisadas. Dos seus pés trapezistas, das suas mãos miúdas, da alma de luz que se lhe desprendia por entre os dentes. O amor traz esta fragilidade de ter objecto, como face inversa da força que nos dá para o proteger. O amor traz-nos certezas absolutas, tão absolutas quanto a dimensão da sobrevivência e mais válidas que documento lavrado com selo.
Dessa vez escolhemos destino, destino maior que o nosso recreio, um que preenchesse incontáveis viagens de balouço e mais dias que os dias que sabíamos contar. Dessa vez, descemos da nuvem maior com palavras certas e recolhemos os livros nos braços. Alinhámos os passos e desatámos correria atados pelas mãos. Corremos tanto que teremos corrido demais. Corremos tanto que o balouço envelheceu a oscilar.
O que faço eu sem Helena, minha mãe?

Bastet
Sol&Tude

14. O Baloiço do Parque, de Alfredo Caiano Silvestre




(...) Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi. (...)

Era a mais pura das verdades!
Apenas andávamos de baloiço, rindo, gargalhando, felizes.
Uma felicidade imensa.
Chegou o Verão e partiu a Helena.

Nunca mais a vi.

Nos meus textos jaz a memória desses dias.

Ocupa-me todo o tempo. Tento passar para o papel cada emoção, cada sorriso, cada alegria, cada gargalhada. Fixo, nestes papéis que comigo carrego todos os dias, a alegria desses dias.

Escrevo-me, escondido de mim.
Chegam-me ecos longínquos de uma fama que recuso. Eu, José, quero mais este café da minha aldeia. Este convívio com esta gente simples para quem sou “o poeta”, um pouco louco. O estar nestes lugares que me trazem a Helena todos os dias.

Ele, o outro, o famoso, dizem que vive retirado.



Querido José
Escrevo-te esta carta que nunca receberás.
Os meus pais

Alfredo Caiano Silvestre
O Souselense

13. O Baloiço, de Rui

SMS: Olá, Maria Helena. Tudo bem? Já não nos falávamos há um ror de tempo. Ah, eu sou o Duílio, lembras-te de mim? Tenho andado a contactar todos os meus amigos, novos e antigos, próximos e distantes. Tu ficaste para o fim, não sei bem porquê. Mas como é que tu estás?

SMS: Não sei se tens ainda este nº de telemóvel. Ou então não te lembras mesmo de mim. Na escola, no baloiço cá fora, quando eu me sentia só e tu sorrias-me, recordas-te?

SMS: Se calhar ficaste ofendida por eu te deixar para o fim. Não é o que tu pensas. Eu explico-te: não sei se é a mais exaltante, mas é a memória mais doce aquela em que tu tocas o meu espírito! Trata-se, por isso, do receio de essa memória se estilhaçar: há tanto tempo que não te vejo, podes estar tão diferente, sei lá, mais amarga... bem, nisso eu não acredito, mas a verdade é que fui adiando o momento de chegar a ti.

SMS: Perguntas-te: mas porque raio não pega ele no telefone e fala directamente comigo? Olha, Maria Helena, porque não me sendo fácil dar-me com as pessoas face a face (lembras-te?), desenvolvi uma certa habilidade no escrever (com algum sucesso, como talvez tu saibas e se me permites a imodéstia): é na escrita que estou mais seguro e que consigo pensar e dizer mais exactamente o que sinto.

SMS: Deixa estar, Maria Helena, não fico zangado com o teu silêncio. Foi bom visitar-te, visitar a minha memória contigo. Só me assusta pensar que possas estar doente ou algo pior.

1 mensagem recebida: Olá!...


(- Está a ver, doutor, está a mexer os dedos da mão...
- Tem razão, enfermeira. Vamos ver: eu já não acreditava, mas parece que afinal o temos de volta!)

Rui
Onde Mudar

agosto 02, 2005

12. Adamastor, de Ivar Corceiro

Às vezes alguém bate à porta insistentemente e, insistentemente também, suavizo os passos. Deixo-me estar quieto, embora o coração se apresse a irrigar o cérebro em batimentos irregulares, e não abro. É que às vezes podes ser tu, e se não fores eu não o quero saber. Como nunca quis saber quem ias ser.Tractores enrugaram a terra que atapetou a nossa infância, e, esquecidos entre alguns edifícios que o tempo amamentou, desenharam o horizonte de fuligem, transformando o nosso baloiço altivo numa espécie de menino perdido da rua. Triste e apagado. A sua sombra, cujo lento movimento acompanhávamos durantes tardes inteiras de mãos dadas, desmaia agora entre as sombras dos prédios. Às vezes vou lá, e a lentidão com que o faço tange-me de tristeza. Tange-me, mas não me toca. Às vezes a minha cabeça adormecia no teu ombro e perguntavas-me se íamos casar. Que sim, que íamos. Aquele baloiço era a nossa testemunha.Às vezes bato à porta insistentemente e, insistentemente também, um homem alto demora a abrir. Depois diz-me para entrar e esperar quieto, que as putas estão todas ocupadas, e eu deixo-me estar tão quieto como o Adamastor, que é como me sinto: monstro e húmido de excitação, enquanto o sangue me corre nas veias e o sexo coagula à espera que uma mulher, às vezes linda, venha ao hall e me chame.A última que me chamou eras tu, Helena, e respondeu que sim quando lhe perguntei se me conhecia. Depois despiu-se parcialmente, até eu lhe dar a mão. Sentámo-nos na cama com os lençóis ainda desarrumados pelo cliente anterior e eu deixei-me adormecer no seu ombro. Os minutos baloiçaram toda a noite entre nós. Depois escrevi a minha morada num cartão e dei-lho com uma pequena nota por baixo: ainda não casei.Agora às vezes alguém bate à porta e eu não abro. É que às vezes podes ser tu, e se não fores eu não o quero saber. Como nunca quis saber quem ias ser.

Ivar Corceiro
Žuta Rakija/Bagaço Amarelo

11. O Escritor Famoso... e Helena, de um escritor anónimo

Era Primavera.

Lembro-me da brisa suave que fazia o teu cabelo voar e pousar na minha boca. Não ousava retirar esse pedaço de ti de mim e lançava-te então um sorriso de Eros. Tu viraste-te e nos teus olhos eu vi toda a melancolia desses tempos de criança...

Lembro-me das fragâncias que me atacavam... Eram rosas, malmequeres, amores-perfeitos, papoilas, violetas, jasmim...

Não sei se vinham de ti, do teu cabelo, da tua pele ou se vinham da natureza que nos rodeava e que nos abraçava enquanto baloiçávamos...

Esses aromas e essa brisa voltei a sentir hoje, Helena. Passados estes anos, voltei a sentir o teu cabelo na minha boca, voltei a ouvir aqueles gritinhos que soltavas sempre que empurrava o baloiço com um pouco mais de força, voltei a sentir as tuas mãos nas minhas, voltei a cheirar esse perfume que, hoje sei, emanava do teu corpo...

Juntos, Helena, escrevemos uma canção de Maio...

De um escritor anónimo
The May Song

10. Estranhos frutos de vento, de Elisa

E o baloiço oscila ao vento.Agora só. Poucas crianças há no parque a esta hora a que o visito. Sento-me no baloiço e tento lembrar-me de Helena. Maria Helena. Era miudinha. Com os cabelos da cor de um castanheiro no Outono. A cor dos olhos já não a sei. Nem o tom da pele. Nem o da voz. Nem o aspecto que tinha nas manhãs frias de inverno. Mas lembro-me bem de como andava de baloiço Maria Helena. Oscilava com ele e com o vento. Maria Helena era o vento, nas tardes vagarosas em que nos escapávamos às aulas e procuravamos voar. Como o vento. Oscilando no baloiço. Por vezes eu empurrava. Devagarinho. Para que Maria Helena não caísse. Outras vezes empurrava-me ela. Com toda a força que conseguia ter. E mesmo assim, eu apenas ondulava até ganhar balanço. Pernas esticadas, pernas dobradas. Pernas esticadas, pernas dobradas. E voava mesmo. Eu. Lembro-me de tudo isto, enquanto estou sentado no baloiço. Sozinho agora. Sem a Maria Helena e os seus cabelos da cor tomada pelas folhas dos castanheiros, no Outono. Já o disse. Acendo um cigarro e a ponta põe-se a arder exactamente na mesma cor que tinham os cabelos de Maria Helena. Estava capaz de a ver chegar parque adentro. Não já pisando a areia, mas este chão que agora põe nos parques infantis, onde nem os cães se atrevem a fazer o seu chichi, onde nem perdemos as pequenas coisas que carregamos nos bolsos. Ou as memórias. Não sei onde deixei de me recordar de Maria Helena. Não sei em que outro parque perdi a sua memória toda.Maria Helena. Voltei a lembrar-me de como ela oscilava com o baloiço e com o vento. Hoje. Foi hoje que me contaram. E hoje estou aqui no baloiço, à espera que os cabelos de Maria Helena atravessem o portão. Há vinte anos atrás, numa noite qualquer, a minha mãe perguntou-me, recriminadora, que andava eu a fazer, pelas tardes, com a Maria Helena. Eu respondi-lhe com a verdade, que é sempre mais difícil de sustentar que a mentira: andamos de baloiço, mãe. A mão da minha mão voou mais depressa que o baloiço, naquela noite. Mas não me importei. Pensei na Maria Helena e nos castanheiros e no vento. Hoje a minha mãe perguntou-me, pesarosamente:- Lembras-te da Maria Helena? Aquela miudinha ruiva com quem ensaiavas brisas e vendavais, no baloiço, em vez de estares a resolver equações?De repente lembrei-me da Maria Helena, em quem não pensava há tantos anos. Disse:- Sim, mãe, lembro-me. Que aconteceu?- Morreu, filho. A Maria Helena morreu.- Morreu como, mãe?- Morrendo, filho. Há outra maneira de morrer senão morrendo?De repente a ideia da Maria Helena a oscilar com o vento no baloiço acertou-me não sei onde. Cá dentro. Não sei onde. Mas senti que o sangue começou a circular mais depressa. O medo de saber.- Mas como, mãe, de quê?- Morreu matando-se, filho. Um dia triste. Uma história triste.Fiquei a pensar na Maria Helena que, porque nunca mais a vi, permanecia pequena num canto da minha memória. Agora morta. E tão pequena.- Mas triste, porquê, mãe?- Não sei bem. Parece que há uns anos se apaixonou por um escritor famoso. Daqueles que não aparecem nas revistas e não vão à televisão. Não sei sobre o que escreve.- Que escritor?- Não me lembro do nome. Só sei que é um escritor famoso. Mas não aparece. Acontece que a Maria Helena criou uma obsessão pelo homem. Escrevia-lhe cartas. Telefonava para a editora. O escritor nunca lhe respondeu. Nem um autógrafo lhe mandou. Uma fotografia. Nada.- E ela matou-se por causa de uma pessoa que não conhecia, mãe?- Um dia, há uns meses, o escritor publicou um novo livro, segundo me contaram. Numa das páginas do livro, a Maria Helena leu uma frase que lhe tinha mandado, numa das cartas não respondidas...- Que frase, mãe?- Espera, acho que a anotei em qualquer lado. Era impressionante.Fiquei sozinho por momentos na cozinha da casa de quando era pequeno. O sangue continuava a circular com o ritmo do medo.- Olha, está aqui a frase.Peguei no papel, uma conta de supermercado amarrotada. O sangue não parava. Saí da cozinha. Corri até aqui. Ao baloiço. Sentei-me. Acalmei o sangue com os cigarros e as recordações de Maria Helena. A frase fui eu que a escrevi. Ninguém sabia e sabe que o escritor famoso sou eu. Não apareço. Não uso o meu nome. A frase era dela? A frase... a frase... «o baloiço oscila ao vento, como sempre. É com o que sonho todos os dias. O baloiço oscila ao vento. Como os mortos se baloiçam, no Outono. Pendurados em árvores que se recortam na paisagem. Estranhos frutos de vento, os mortos».Matei a Maria Helena. Matou-se a Maria Helena. No Outono. Oscilando ao vento no castanheiro da cor dos seus cabelos. Como quem oscila ao vento num baloiço.

Elisa
Pilar da Ponte de Tédio

9. o escritor, de grão de pó

acordou tarde. esquecera-se de programar o despertador, depois da festa de apresentação do seu último livro, no dia anterior. mais um sucesso, sem dúvida, garantiam críticos e amigos. na realidade, bebera demais e tudo o que conseguira fazer ao chegar a casa fora arrastar-se até à cama, não sem antes perder a conta do tempo e do cálculo da quantidade de taças de champanhe ingeridas no degrau de entrada de casa. acordou tarde e com a cabeça zoada, pensando para si que seria bom deixar-se de bebidas brancas, que o seu fígado já se ressentia. ao espelho via a pele amarelecida e subia-lhe a escala da hipocondria hepática.
recorda-se das suas pernas longas e torneadas, envoltas em meias de seda que nunca havia vestido, difusas agora da tontura do álcool ainda em circulação, e do seu vestido claro, iluminado pelos tons de cereja do seu cabelo castanho. da sua pele aparentemente suave e do cauteloso andar sobre sapatos novos, de salto agulha.
não pensara que fosse, ao reavaliar o remate silencioso de palavras quando ela lhe pedira que lesse o seu manuscrito. achava que lhe ferira o orgulho… mas contra todas as suas expectativas ali estava ela. reconhecera-a pelos passos, que detrás dos anéis de fumo do seu cigarro, mal lhe olhara o rosto.
somente mais tarde, sentado no mesmo banco de jardim de sempre, com o amontoado de papel ao seu lado, o nome dela acordou com o baloiçar das memórias do recreio prolongado… maria helena… e foi então que o pacote de leite tornou a rebentar, cheio, em cima das suas calças com joelheiras cosidas, e a mão doce voltou a pegar na sua, meio pegajosa do achocolatado, depois de lhe limpar as lágrimas. não pensara tornar a vê-la. no último dia de escola tinha-lhe deixado um bilhete naquelas folhas que as meninas coleccionam, cor-de-rosa e perfumadas, que se ia embora, que gostava dele. lembra-se de ter voltado a sentir o sabor do sal a escorrer face abaixo. e de a ter esquecido com a puberdade.
recorda-se da sua mão esquerda com o seu anelar inchado do garrote de ouro, enquanto obriga a carne cansada à água fria do chuveiro.

risca-me

grão de pó
Pastéis d'óleo

8. o baloiço, de grão de pó

o baloiço retornou à solidão das horas mortas em que a escola ocupava o lugar dos sonhos das crianças que brincavam nas linhas brancas traçadas no alcatrão. e os risos foram substituídos pelas folhas amarelecidas das árvores vestidas de outono.
às vezes, ao fim do tarde, os seus metais semi enferrujados vislumbravam ao longe uma silhueta que com o passar dos anos foi perdendo a familiaridade. reconhecia-lhe, contudo, a pose franca marcada de uma qualquer tristeza indizível. ao início, quase que sentia a humidade salina escorrida pelos olhos, um qualquer reumatismo metálico, cujo diagnóstico urbanista marcaria o fim da sua existência e substituição por um modelo mais novo, de madeira, segundo os novos catálogos camarários. mas isso só daí a muitos anos, que aquele parque parecia ter ficado esquecido das novas normas de segurança e higiene. ainda tinha areia.
no desfolhar dos calendários, puseram, onde a vista podia alcançar, a companhia de um banco de jardim, ladeado por duas amostras de árvore, ao início, que hoje lhe recordam que os tempos de juventude já se escoaram debaixo das duras chuva de Inverno. e nesse banco de jardim, a silhueta que quase reconhecia, não fosse a sua memória apagadiça de anos de existência que lhe cortava tantas vezes o fio à meada, costumava abrir-se uma pasta parda, de onde saíam folhas de papel reciclado. tinha a certeza que era reciclado, as árvores sussurravam-lhe a satisfação da celulose reaproveitada, a sua imortalidade… contavam-lhe também o que conjuntos agrupados de lâminas de papel faziam vibrar no ar. chamavam-lhes histórias e eram escritas pela silhueta familiar que envelhecia sob o seu olhar. parecia que era famoso. e escritor. mas para além das palavras tatuadas no beije pardo, soltava-se no ar uma indizível melancolia de qualquer coisa perdida para sempre. eram os manuscritos que o murmuravam, à laia de rumor, assumpções pressentidas de variações subtis da pressão do carvão de lapiseira mina 0,5 no papel.
depois, as pessoas que passavam começaram a parar ali, ao seu lado. autógrafos. o baloiço não compreendia muito bem, mas associava-os às palavras gravadas na tinta descolada dos seus membros enterrados na areia usada. sabia-se, pelas folhas de jornal escorraçadas pelo vento, que acontecia que as pessoas adquiriam algum tipo de notoriedade. coisas de homens. contudo, o que ele realmente queria saber, era onde estava a outra silhueta, a de menina que tomava a mão daquele agora homem ali sentado e lhe limpava as lágrimas dos olhos. dela as árvores nada sabiam. havia sempre uma mulher naquelas histórias e algo que ligava as mulheres dos diferentes contos, mas uma mulher sem rosto. sem nome.
até ao dia em que as folhas de papel reciclado tiveram que guardar espaço para 37 páginas de papel imaculadamente branco, engolindo o despeito por aquele parente estranho, traziam um nome a cada página par – maria helena. e foi então que algo recolhido há tanto tempo nas recordações encaixotadas da memória sucedeu. a silhueta deu lugar à forma e à cor e o peso dos seus anos de melancolia e escritos, pousou-se no agora estreito baloiço enegrecido pelo tempo.
lá de longe, ressoaram os risos de crianças, de novo.

risca-me

grão de pó
Pastéis d'óleo

7. helena, de grão de pó

revolve-se na cama, nas noites em que a insónia entra pela janela e senta, numa pose de buda, no soalho cor de pinho à cabeceira do leito de lençóis negros.invariavelmente, o mesmo sonho a trazer-lhe a espertina e o abrir de olhos sempre à hora pouco certa. 05:01. um baloiço ao vento, solitário, ladeado por duas árvores, atrás das quais alguém se esconde. consegue ver-lhe as mãos, pequeninas.há três meses que se repete, o sonho, onde às vezes avança uns passos, em direcção às mãos. e chama. chama qualquer nome que não consegue ouvir, com uma espécie de embargo de voz que não entende. como não compreende ainda que começou a sonhar no dia em que leu, sob a varanda da sua infância, o fio condutor do seu inconsciente, os eléctricos são bichos de seda, cujas borboletas morrem ao desovar. havia anos que os seus pés não pisavam as pedras daquela calçada… lembrava-se vagamente de uma noite em que o pai chegara a casa com a cara fechada e anunciara, naquele tom que não admite réplica vamos mudar de cidade.nos resquícios da sua memória, apanha o fio solto duma qualquer nostalgia que o seu cérebro não consegue evocar. uma espécie de brisa fresca temperada de riso de criança.há três meses, 87 dias, mais concretamente, riscados no calendário após a segunda semana, que desperta do sono, sempre àquela hora curiosa, e olha o homem adormecido ao seu lado. por vezes o seu anelar esquerdo lateja, talvez esteja apertado… levanta-se à fraca luz do candeeiro da mesinha de cabeceira para pousar a aliança, olhando num suspiro o espelho pouco iluminado donde ressalta uma outra hora. 10:20. imperceptivelmente, arregaçam-se-lhe as comissuras dos lábios. é que aquela era a hora do recreio grande. com um sorriso que lhe solta as perguntas das paredes do cérebro, volta a deitar-se, olvidando o sonho. ocorre-lhe que precisa de um livro… talvez o escreva.até amanhã.

Grão de Pó
Pastéis d'óleo

6. A Prima, de Formiga Assassina

A família
Os ossos doem-me, o frio, a humidade, este maldita, mas bem vivida velhice, que me atormenta há anos. Mas graças a Deus tenho alguém com quem posso compartilhar estes dias de hoje, porque houve dias em que nada tinha, ninguém, só o vazio das paredes, o som do vento, que fustigava as janelas do piso de cima. E de todas, a do quarto do André e da pequena, que há muito estava partida, era a que mais me fazia arrepiar. Tenho que ir buscar mais lenha, comentei. O fogo brando, quase sumido, que quase não aquece, na lareira monstruosa e as sombras na parede, a fazerem lembrar mantos negros, como abutres, que esvoaçam pela sala na noite.
Levantei-me, ao lado da lareira um cesto de verga, envelhecido pelo fumo e pelo calor, estava meio de lanha. Retirei dois troncos grossos e coloquei-os na lareira. Peguei no livro que lia, já há duas semanas. Aquela passagem em particular fez-me lembrar a minha infância. Os dias em que corria pela casa fora com a minha prima, na altura má como as cobras, matreira, dela nada se podia prever, mas o amor que sentia por ela, superava qualquer coisa. Um dia de inverno, como este, andávamos a correr pela sala numa gritaria pegada. A minha prima tinha-me tirado do meu quarto um pequeno cavalinho de pau, que o meu tio tinha feito com a sua navalha, sempre impecavelmente afiada , com todo o carinho. E lá andava ela com o cavalinho na mão a troçar de mim e quando passava por esta lareira, fingia que atirava o cavalinho. Eu, em pânico, gritava e chorava. A maldade era tanta que nem um leve, suave, materno, doce, tão doce, “parem com isso!”, da minha querida mãe, a fazia parar. Eu nunca consegui compreender porquê. O que a levou a atirar o cavalinho para a lareira. Tenho cá as minhas suspeitas, mas é muito difícil de compreender. Com tamanha gritaria e choradeira, foi inevitável que o meu bem dito papá ia ouvir. Austero, severo, com voz de trovão, as mãos do tamanho de panelas de sopa, os olhos azuis, mais azuis que o céu e o bigode grisalho de pontas reviradas para baixo. Era muito alto, tão alto que não se lhe conseguia ver a alma, mas doce, tão amigo e afável e tão cruelmente justo, mesmo muito justo! Ao chegar à sala, soltou um, “gostava de saber o que me perturbou o sono!”. Eu não consegui soltar uma palavra que fosse, tudo se gelou dentro de mim. O cavalinho deixou imediatamente de existir, a única coisa que me ocorreu foi o destino da minha pobre prima, mas nem uma palavra, nada. Não conseguia salva-la. Quando me lembrava do que ela tinha feito, o ódio percorria o meu coração. - O que se passou, Júlia? - Perguntou à minha mãe. - Nada Senhor, nada se passou. Não achei justo. Mas era melhor assim que aplicar a justiça do meu papá sobre a minha pobre prima. Ela, que era sempre muito irrequieta, sempre que o meu papá estava por perto, tornava-se na moça mais sossegada, angélica e doce que alguma vez havia existido. Eu, que padecia da mesmo justiça do meu pai, suportei mal todo aquele clima obscuro de traição. Ele, que estava ainda de maus modos, sentou-se no seu grande cadeirão e pôs-se a olhar.
- Júlia, o seu filho está com um olhar muito rancoroso, algo se passou! Seria melhor contar-me o que se passou - A minha mãe insistia, senhor nada se passou! Eu, eu nada podia fazer. O meu papá era contra a covardia que assolava a maioria das crianças e sabendo disso, insurgi-me. - Prima, gostava que visses brincar comigo para o meu quarto... - Não me apercebi do que tinha dito. O meu pai quando estava na sala não queria que ninguém a abandonasse enquanto ele lá estivesse. Fiquei muito nervoso. A enorme e volumosa cabeça, voltou-se na minha direcção e de um só sopro, trovejou: O menino sabe que não pode fazer isso, não sabe? Mais uma vez o meu corpo gelava, era como que todo o meu sangue quente nas minhas veias me abandonasse e no seu lugar corriam torrentes de gelo. - Sim senhor... - Respondi com o coração na mão à espera da facada fatal. A minha adorada prima, que de feia sempre teve muito pouco, olhou para mim e da sua boca linda, saiu a língua vermelha como uma cereja. O ódio foi superior à presença do meu pai. Nada me podia travar naquele instante. Saltei de um só impulso para cima dela e bati-lhe tanto com as mãos fechadas que nem as mãos vigorosas do meu papá conseguiram arrancar-me. Estava louco de raiva! A muito custo conseguiu separar-nos. A mãe, que sempre a vira com a calma de uma leve brisa, salta do enorme sofá deixando cair a sua primorosa renda e tenta também separar-nos. Eu fiquei nas mãos do meu pai. Ainda esperneava de raiva. Pela cara da minha prima escorria um fino fio de sangue que lhe vinha cabeça. A minha querida mãe, em pânico, olhou-me nos olhos e perfurou-me! O meu pai afastou-me dali de imediato, levou-me para o quarto e trancou-me a sete chaves. Fiquei quatro semanas a pão e água, de janela fechada, tapada por fora. O caseiro, o Sr. Antunes, enquanto pregava as tábuas na janela, escorriam-lhe lágrimas grossas pela face seca pelo pó do campo, enquanto eu ficava ali encarcerado. Tinha uma vela que tinha de racionar, pois era a única para me fazer companhia. Todos os meus pensamentos estavam voltados num só sentido, a vingança! As quatro semanas transformaram-se em anos num colégio interno. Cresci rancoroso, fechado, triste, com pensamentos pecaminosos, sem vida interior. Nunca mais vi a minha amada mãe nem ela, a prima linda me saía da cabeça... Quando soube da morte da minha mãezinha, abateu-se sobre mim uma tristeza e uma dor tão grandes que a única esperança tornou-se óbvia, tinha que me vingar.

A cidade
Com 19 anos, acabei todos os estudos, era agora médico. Não tinha um único amigo. A igreja ia-me dando algum apoio, mas até aquele dia nada nem ninguém sabia o que me trouxera àquele colégio. A única coisa que sabiam no colégio, era da existência de uma família que nada dizia, nem uma visita, nem uma carta, só um mensageiro com a morte da minha mãe e a mensalidade. Saí para a cidade com os meus 20 anos. O Padre Zacarias aconselhou-me um cirurgião muito famoso. Fiz-me ao caminho. Tinha crédito para um dia, não mais. Ao chegar à grande cidade pressenti algo nefasto, nada iria ser como até aí, iria ser bem pior. A agitação, o barulho, os olhares, os risos, as falas, os trajes, o cheiro, tudo era novo e distinto, nada igual ao que alguma vez tinha sentido. Mas, para além disso, senti um frio de medo a percorrer-me as costas. Bem que o Padre me havia avisado. Tal como o Padre me ensinara, perguntei a uma velhota que vendia fruta como fazer para chegar à morada do famoso cirurgião. Não sei quanto tempo andei a pé, mas perguntei indicações a sete velhotas que vendiam alimentos na rua. No final, bati à porta exausto. Ninguém... Esperei quatro dias. Ao final dos mesmos quatro dias, apareceu uma senhora de meia idade que, com muita ternura, me perguntou se eu estava perdido. Expliquei-lhe a razão pela qual estava ali e prontamente se ocupou de mim. Convidou-me a entrar, esperar pelo médico que tinha saído para fora por uns dias. Estava a morrer de fome. Só trazia uma mala e a roupa que tinha comigo e umas coroas para dormir, que guardei para comer algo. Em quatro dias tinha comido quatro maçãs. Estava mesmo com fome. O médico chegou passados alguns minutos. De olhos pequenos, muito elegante, muito aprumado, de chapéu alto e bengala, de cara muito lavada, sem uma única ruga, como se a pele fosse de cetim. Prontamente a senhora justificou a minha presença. O médico ficou muito impressionado, tão novo e já médico?! Expliquei em poucas palavras o meu passado e o médico compreendeu. Esticou a sua mão, muito macia e fria - Dr. Ernesto de Vasques, às suas ordens. - Eu nem sabia o que dizer, estendi a minha mão e apresentei-me, Afonso Biscaia, um seu criado. Foi a primeira vez em 15 anos que disse o meu nome a um estranho. De certa forma não me soou bem, nem a mim, nem ao Dr. Ernesto. Biscaia? De onde? - Perguntou de sobrolho levantado. - De Vandins de Cima, Sr. Dr. - disse eu a medo. - Não acredito! - E dizendo isto o Dr. dá um passo a trás, com o olhar raiado de espanto. - Tens a certeza? - Perguntou ainda incrédulo. - Sim Sr. Dr., tenho. Eu não compreendia o que se passava. Ele, pega no meu braço com toda a força e atira comigo para fora de casa, com a mala que trazia e aconselha-me a sair da cidade o mais rápido possível. Algo se tinha passado e era com a minha família, algo de muito grave. Não podia ser mero acaso, o Dr. Ernesto não podia conhecer a minha família, seria um verdadeiro acaso. Peguei na mala. Estava desesperado. Não sabia para onde ir. Já era noite. Pernoitei num vão de escada ali perto. Pela manhã, resolvi procurar algo para fazer. Se ia ficar na cidade, teria de arranjar sustento. Durante dois dias procurei trabalho, ninguém me queria. Era demasiado franzino para fazer trabalhos pesados e eram os únicos que encontrava. Por fim, consegui um emprego numa fábrica de peles. Trabalhava-se do nascer ao pôr do sol, sete dias por semana e dormia-se dentro da fábrica, juntamente com mais centenas de operários. Durante anos a fio trabalhei naquela fábrica. Via muito poucas vezes a luz do dia. Mais uma vez, o isolamento era profundo, os pensamentos cada vez mais densos. Nada nem ninguém sabia quem eu era. De três em três meses tinha folga. Um dia, numa dessas folgas, saí e nunca mais voltei. Dentro da fábrica tinha-me informado como teria que fazer para chegar à estação de comboios. Assim fiz, com o pouco dinheiro que me pagavam, juntei o suficiente para sair daquele inferno e meti-me no comboio, rumo a casa.

A casa
Na viagem, pensava em várias coisas. A primeira, e a mais antiga, a vingança, a segunda, era saber o que se tinha passado para aquele Médico ter tido aquela reacção e, a terceira, era se o meu papá ainda estaria vivo. A viagem demorou cerca de seis dias. Estava realmente muito longe. Depois de um dia no comboio, dois dias de diligência, mais dois a pé e um pelo meio para descansar. Quanto mais me aproximava da região, maior era o aperto no coração, não sabia se estava a fazer bem. Por uma lado, só pensava numa coisa, o reencontro com o passado e a saudade, por outro, o rancor, o ódio.
Estava agora com 29 anos, deformado, muito envelhecido, pálido. No entanto, quanto mais me aproximava, mais me sentia a rejuvenescer. Lembrava-me dos momentos que passei com todos, a mãezinha, o papá e até mesmo a prima, a pobre prima. Órfã. Era filha do irmão do meu pai, que morreu juntamente com a minha tia, num incêndio. As circunstâncias do incêndio sempre foram muito dúbias, mas não seria muito difícil adivinhar o que se tinha passado. Comecei a lembrar-me dos tempos da escola primária. A minha prima Helena (há quanto tempo não digo este nome...?), que andava na mesma classe que eu e que gostava muito de andar de baloiço ela e eu. Ali ficávamos horas. O intervalo, que era de apenas meia hora, transformava-se, no entanto para nós pareciam só dois minutos. Andávamos sempre juntos, até havia quem dizia que éramos namorados, mas isso não podia ser! Mas era de facto e por isso, por vezes, só para nos chatearem atiravam-nos um pedra ou outra, mas nunca nos acertavam. Helena ficava muito irritada com isso, corria atrás deles e batia-lhes com tudo o que tinha à mão. Por vezes era eu que tinha de acatar com a culpas, pois uma menina não tem comportamentos daqueles. O comportamento na escola, levou a chamar a mãezinha, que perguntou nesse dia à noite, longe dos ouvidos do papá, o que estava eu a (a)fazer com a Helena. Eu, com um brilho nos olhos, respondia - A andar de baloiço com a Helena. A mãezinha abraçava-me e pedia para ter mais cuidado, se o papá soubesse seria muito grave.
No meio destes pensamentos lamechas, vinham as ondas de ódio. Um simples episódio tinha transformado toda a minha vida, repleta de prosperidade, como podia ter sido, pensava eu lavado em lágrimas. E o que teria acontecido a Helena, matreira e cínica como era, pensei que devia ter feito as coisas de forma a ser perfilhada pelos meus pais. Ai que dor! Continuei o meu caminho, estava quase a chegar, já sentia o cheiro. Ao longe, por entre os cedros altos, avisto as chaminés do casarão, imponentes como sempre. Parei, achei aquilo absurdo. O que estava eu a fazer ali? Não tinha sentido. Passaram muitos anos, eu para esta gente estaria morto, mesmo se não estivesse, deveria estar. E também eu devia enterrar este meu passado horrendo e sair daqui. Com este pensamento voltei para trás. Mal iniciei a minha caminhada para trás, parei de novo. O ódio apoderou-se dos meus punhos, cerrei-os e fiz-me ao caminho, tinha de me vingar! O casarão estava com muito bom aspecto, todo pintado de branco, de um branco angelical. O jardim estava impecável, cheio com as cores do arco íris, lindo. Apetecia morrer naquele lugar, seria uma benção. Limpei as vestes sujas de pó, arranjei o cabelo, o pouco que tinha, limpei um pouco os sapatos cheios de lama e peguei na grande maçaneta da porta principal. Como tudo aquilo me parecia bem mais pequeno, quase normal. Enquanto esperava que alguém abrisse a porta, olhei mais uma vez o jardim e reapreciei-o na sua beleza. Acho que nunca tinha reparado, ou será que me tinha esquecido? Envolto nestes pensamentos, sinto a porta a abrir-se. Voltei-me e lá estava, como imaginei, o Sr. Antunes, o fiel caseiro, não me reconheceu. Não estamos a dar nada, nem sequer temos trabalho para si, vá-se embora! - Fiquei calado. Olhei nos olhos dele. O Sr. Antunes teve um estremecimento e tombou um passo atrás. Menino Afonso...? - Ficou sem qualquer tipo de expressão, nada, estava gelado, petrificado. Não é possível! – eram as únicas palavras que dizia. Posso entrar Antunes? Perguntei com um leve sorriso nos lábios, o primeiro dos últimos 22 anos. Não sei, respondeu.
O que se teria passado? Primeiro o Médico, depois isto? O que se tinha passado? Fiquei transtornado. O menino não sabe? Perguntou-me o Sr. Antunes. Não sei de nada Antunes, nada! Desde que cheguei à cidade que tudo se tornou muito estranho, sem explicação. Eu não mereço isto! Diga-me Antunes, o que foi? O que se passou? - Estava cada vez mais desesperado, confuso, sem rumo, tinha chegado ali com tanto esforço, com tanta dor acumulada, com todo o rancor do mundo, com o ódio que me consumia o coração e alguém ali especado na porta da minha casa, a fazer-me perguntas, o que me transtorna ainda mais, o que me faz preocupar com esta gente? Gente que me abandonou, que me deixou, como a um reles cão d(a)e rua. Era demais! - Antunes, de uma vez por todas diga-me o que se passou !
- O seu pai assassinou uma pessoa, por causa da menina Helena e neste momento está preso.
Não me espantei, tudo seria possível, vindo da prima. Já nada tinha importância-



A prima
- E porque razão não me deixa entrar Antunes? Isso não é razão. Empurrei-o e precipitei-me para dentro da casa. O já velho Antunes nada pode fazer, estava já sem forças para me travar. A casa estava linda! Nova, como eu nunca a tinha visto. Mas como? Se o meu papá estava preso, quem tinha posses para sustentar a casa e tudo aquilo? O Sr. Antunes ordenou que saísse, mas eu não o ouvia, não queria saber, estava muito intrigado. Ouvi vozes que vinham da sala. Pareciam vozes de criança. Fui entrando. No sofá grande uma mulher, de costas, falava com duas crianças que a escutavam com muita atenção. Não deram pela minha entrada. Um arrepio percorreu-me as costas. Uma das crianças era a prima, a Helena. Não podia ser! Gritei de espanto: HELENA!!
Ao mesmo tempo entra o Sr. Antunes. As crianças assustam-se com o grito e gritam ainda mais alto, a mulher também assustada levanta-se e volta-se. Helena?! És tu?! - A mulher era a prima. O Sr. Antunes agarra-me e tenta tirar-me dali. Sacudi-o com tamanha força que foi embater com a cabeça na mesa. Ficou inconsciente. - Afonso? És tu? Estás vivo? O que estás aqui a fazer? Não sabes que não podes estar aqui? Crianças corram lá para cima - Disse Helena. Mas eu não as deixei passar e agarrei em ambas. A miúda era igual, igual à prima, impressionante. Então quem são estes, Helena? Os teus filhos, é? Que lindos! Vai ser uma pena... Helena viu os meus olhos e começou a implorar. Não, por favor, mais tristeza não! Não consigo suportar mais! - Dizia Helena, já com uma lágrima no olho. Achas que iria fazer isso minha rica prima? - Dizia eu num tom maléfico. Enquanto isso, as crianças não paravam de gritar, mandei-as calar, depois, levei-as para a cave e deixei-as lá, fechadas à chave. Helena implorava e puxava-me, mas eu estava cego de raiva. Não conseguia ver mais nada, a vingança, o ódio, tudo, tudo! Os anos que tinha perdido, a felicidade, o afecto, tinha perdido tudo e tudo por culpa da prima, a maravilhosa prima. Estava mais bonita do que nunca. Fui pacientemente para a sala. Ela tentava desesperadamente abrir a porta da cave. Ali fiquei na sala, até que ela com um machado na mão corre na minha direcção, para me tentar matar. Consegui evitá-la a muito custo, a loucura estava espelhada na cara dela, a todo o custo tinha que me matar. Corre-mos pela casa fora, parecia que tínhamos voltado à infância. Que giro! Por fim consegui tirar-lhe o machado da mão e pedi que se acalmasse. Necessitava de falar com ela. A princípio nada que eu dissesse fazia diferença, ela só queria soltar as crianças. Mas com o passar das horas, lá se acalmou e sentou-se comigo na sala. Minha prima, minha linda e amada prima, como estás? Vejo que estás mais bonita que nunca.. Os dias correm-te bem? Estás com muito bom aspecto. Casaste? Filhos, muito bem! Gosto do que estou a ver. - Dizia-o com um misto de rancor e saudade. Não havia qualquer tipo de dúvida, eu amava-a. Mas não conseguia dize-lo. Ouve Afonso, eu não sei o que se passou contigo, não sei mesmo, mas eu não sou culpada dos teus horrores. Como seria possível ela ter a coragem de dizer aquilo. Eu não estava a acreditar. Desde o dia em que te bati, aqui neste sofá, que tudo para mim mudou. Não compreendes. E não compreendia mesmo. Afonso, julgas que foste o único? E eu? Sabes o quanto sofri? Sabes o que me aconteceu depois desse dia? O teu querido papá mandou-me para um colégio de freiras, perdido no tempo e no espaço, só saí de lá aos 20 anos e foi porque fugi. Como se isso não bastasse, perseguiu-me até aos confins da terra, fez-me passar pelas piores situações da minha vida, só para lhe escapar. Ainda me vens com o discurso de coitadinho? Não te conhecia assim Afonso. Mas olha que pensava que ele também te tinha matado. Fiquei muito triste, mesmo muito. Tu eras a minha única esperança de alguma vez ser feliz na vida. Não aparecestes, nada, ninguém sabia de ti. Sabes quem foi o teu pai? Sabes do que ele é capaz? Ele mata com as próprias mãos, é um assassino! É um louco! Matou o meu marido! O meu marido era um cirurgião que conheci na cidade e numa discussão, acerca de doenças que podem ser combatidas com cirurgia, em que o teu querido papá acreditava que as doenças só podiam ser combatidas com mezinhas parvas e muita reza, matou de um só golpe no pescoço. Aquelas palavras perfuravam-me o coração. Pareciam tão absurdas, era um cenário tão surrealista. Tudo o que eu acreditava estava ali a ser ultrajado, transformado em barbaridades e dito pela única pessoa que alguma vez podia pensar em matar, torturar, fazer mal, e o que ouvia eu? Que o mau da fita era o meu pai. Achei aquilo muito descabido. Como pode ser isso verdade? Quem pagava a minha mensalidade no colégio? Quem me enviou a mensagem da morte da minha mãe? Para todas estas perguntas - Helena respondeu, O Sr. Antunes... Não podia ser, era demasiado incrível, não podia ser. E julgas que a tua mãe morreu de morte natural? Foi assassinada pelo teu papá que, aliás, não o era. Era demais! Aquela havia sido a gota de água. Cala-te! E dei-lhe um estalo, com toda a força. Isso é demais, estás a tentar que eu te poupe a vida e a dos teus filhos! Acorda! Já não tens 7 anos, eu também não, eu já não acredito em ti! Helena, tu és a pessoa mais má que eu conheço, mais reles, mais cínica, pior que conheço. Deixa a minha casa e já! Esta é a minha casa, põe-te na rua e já!! Peguei-lhe no braço, mas ela não se moveu. Ela só olhava para mim e dizia que eu estava errado e pedia que lhe deixasse contar tudo. Eu, louco de desejo, de lhe dar um beijo, ali, junto a ela, mas ao mesmo tempo só lhe queria espetar uma faca, grande, muito grande no coração, para acabar com tudo aquilo. Nem pensei duas vezes, dei-lhe o beijo mais louco, apaixonado, cheio de amor e, no final, cravei-lhe o machado no peito.

Epílogo
Este dia de Inverno frio, em que no quarto do pequeno André e da pequena Helena a janela bate com o vento, enquanto eles descansam na cave. O Sr. Antunes, há muito que está ali inconsciente, junto à mesa. O meu querido paizinho, que jaz no cemitério de uma qualquer prisão e tu, minha querida, que estiveste a ouvir a história que se repete todos os dias, com a tua inconsolada paciência, que estás aqui ao meu lado a fazer-me companhia, há anos, no teu precioso silêncio. Linda, linda, prima!
(Fala para o cadáver sentado no cadeirão ao lado).

Formiga Assassina

5. O Escritor Famoso e Helena, de Luna

Vagueava noite fora a Lua iluminava-lhe os passos. Pensava na vida que teve, que tinha e que queria ter…tantas e qual escolher, qual a certa, qual a socialmente correcta, qual a mais apaixonada, qual a menos cruel, qual ….
Deu por ela junto ao rio, àquela hora o Tejo que de dia abraçava Lisboa no seu sorriso madrugador, era agora sombrio, assustador e triste.
Na marginal ao longo do cais não se avistava vivalma. Carros parados…uns ocupados de namorados, amantes que ali se afogavam em prazer...outros abandonados a admirar o rio.
O calor da tarde dava lugar á brisa e frio da noite….sozinha olhava em seu redor…ninguém! Só ela e sombras. De quem? Interrogou-se…
Semicerrou os olhos para ver melhor….não via ninguém…seriam sombras perdidas?
Teriam vida própria? Seriam as suas? Mas, se assim fosse seria uma só.
As sombras olhavam-na expectantes para ver qual das vidas escolheria!
Sim eram as suas…tão perdidas quanto ela!
Helena encaminhou-se para o cais de embarque para seguir a sua rotina de regresso a casa.
No barco sozinha, olhou em volta, era a única passageira.
Soou o apito de partida, ao mesmo tempo que alguém entrava num salto.
Depois de respirar fundo e recuperar da corrida, sentou-se de frente para ela, aquele olhar não lhe era estranho…
- As sombras sopraram a brisa, gritavam o teu nome Helena!
Arrepiada sem perceber o que pensar, veio-lhe á memória, o baloiço!
- Sim…o baloiço oscila ao vento!

Luna
Loucura e Nata