janeiro 27, 2007
maio 28, 2006
maio 27, 2006
maio 12, 2006
V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema
Ainda ando a pensar no programa... mas a livraria O Navio de Espelhos já está reservada para nós. Vou organizar um jantarito, está claro... e interessa-me saber quantos ficam para o dia seguinte para um passeio na Ria (que dizem?).
Ah, aceitamos como comparsas, antigos e futuros amigos do Escritor! E Joaquim, espero que nos dês música! Até breve, pessoal! ;)
abril 26, 2006
V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema - and the winner is...
E temos vencedor..., ou vencedora! A história que o Ivar Corceiro, com o alto patrocínio do Cineclube de Aveiro, vai levar à tela será: O Cheiro da igreja, da autoria de Elipse, do blog Palavras em Linha.
Mas vejamos o ranking das 10 melhores classificações finais - a pontuação está assinalada a vermelho:
1º Elipse, O cheiro da igreja, 185 pontos
2º Ivar Corceiro, A morte de olhos abertos, 181
3º Artur Torrado, Roleta russa, 180
4º Elipse, Toda a infância cabe numa caixa enferrujada, 175
5º Bastet, Chá no deserto, 172
6º Fausta Paixão, Oh captain, my captain, 165
7º Lino Centelha, Zerozerossete blockbuster mountain, 152
8º JP, (sem título), 148
9º Rosarinho, Como descobri que os beijos do cinema não existem, 138
10º Hipátia, Gilda, 132
Esta pontuação resultou da soma das votações dos membros do júri e dos concorrentes tal como foi definido no post de 10 de Abril. Todos os envolvidos poderão consultar uma tabela de classificações mais detalhada (que enviarei por email). Mas adianto que o júri ficou indeciso entre a Roleta russa do Artur Torrado (85 pontos, aplicada a ponderação), A morte de olhos abertos do Ivar Corceiro e O Cheiro da igreja da Elipse (ambos com 83 pontos). Os concorrentes, isoladamente, teriam eleito como vencedor Toda a infância cabe numa caixa enferrujada, da Elipse (105 pontos), ficando o Chá no Deserto da Bastet em segundo lugar e O cheiro da igreja, também da Elipse, em terceiro (101 pontos).
Para além da realização de uma curta-metragem inspirada no texto que escreveu, a Elipse irá receber ainda uma oferta da livraria O Navio de Espelhos. Dado o estatuto um pouco especial do Ivar Corceiro neste concurso (mas só a posteriori tivémos conhecimento do convite do Cineclube, e de que este convite o implicava como realizador), será o Artur Torrado que receberá o segundo prémio: um conjunto de DVDs.
O prémio Escritor Bairrista do Cineclube, dirigido ao concorrente de Aveiro melhor classificado será entregue à Rosarinho do blog Farinha Amparo: Oferta de cartão de sócio e anuidade do Cineclube. Como soube que a Filha da Patroa é a concorrente mais nova deste concurso (não sei se a idade é segredo, por isso só vou dizer que ela não poderia ter votado nas últimas eleições), espero que ela tenha a amabilidade de oferecer o dito à dita..., ou talvez o Cineclube resolva o problema de outra maneira...
Muito obrigada a todos os participantes! Muito obrigada aos membros do júri: Sónia Sequeira e Joana Bárrios, representantes dos patrocinadores; O`Sangi e RJM, amigos de sempre; e Paulo José Miranda, um "escritor famoso" que nos toca o coração e que gostamos sempre de ler !
Até breve !
abril 10, 2006
V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema - Votações
Elia Kazan
O júri d' O Escritor Famoso terá a seguinte composição:
(júri residente:)
- Representante d'O Navio de Espelhos, Sónia Sequeira (patrocinador)
- Representante do Cineclube de Aveiro, Joana Barrios (patrocinador especial da V Edição)
- Paulo José Miranda (convidado especial da V Edição)
- O'Sanji, Plan(O)Alto
- RJM, Batatas4People
- MRF
- e todos os concorrentes!
A organização do Concurso facultará uma tabela onde cada um registará a pontuação que atribui a cada texto, usando uma escala de 1 a 10. Os concorrentes (autores) não poderão votar no seu próprio texto nem nos textos de membros do seu próprio blog.
Apuramento do vencedor:
(1) Para cada texto a concurso, serão apurados dois totais parciais: o primeiro resultante da votação do júri residente e o segundo resultante da votação dos concorrentes.
(2) A esses valores será aplicado um factor de ponderação: 1.70 para o total do júri e 1.30 para o total dos concorrentes. Da soma dos novos sub-totais resultará o ranking definitivo.
Prazos:
Todos os participantes na votação disporão de uma semana para leitura (e re-leitura) de todos os textos, devendo enviar a tabela de classificações preenchida até ao dia 18 de Abril.
A comunicação dos resultados finais será feita no dia 21 de Abril.
Concorrentes, participem neste duro julgamento!
Amigos, acomodem-se, e leiam também os textos a concurso! Ficamos à espera das vossas impressões! Quais destes textos gostariam de ver transpostos para a tela?
Actos mentais de cinema ou o primeiro dia de uma curta-metragem
1. Ivar Corceiro, a morte de olhos abertos
2. Fatyly, sem título
3. Pirata Vermelho, sem título
4. J.P., sem título
5. Marte, Estou sim? Deus?
6. Hipátia, Gilda
7. Joaquim Pavão, Uma questão de genes
8. Filha da Patroa, A Mutilação do Sonho
9. Elipse, Toda a infância cabe numa caixa enferrujada
10. Rosarinho, Como descobri que os beijos de cinema não existem
11. Didas, O homem que via muitos filmes
12. Elipse, O cheiro da Igreja
13. Artur Torrado, Roleta russa
14. Fausta Paixão, Oh Captain, my Captain
15. Claudia Sousa Dias, Closer, o epílogo
16. bastet, Chá no Deserto
17. Lino Centelha, Zerozerossete at the blockbuster mountain
A todos vocês, MUITO OBRIGADA!
abril 09, 2006
17. Zerozerossete and the blockbuster mountain
O agente secreto ao serviço de Sua Majestade, recentemente convertido aos apelos democráticos da República, colocou-se à disposição do novo inquilino do palácio cor-de-rosa, receoso de perder o lugar de funcionário público arduamente conseguido, para resolver, de uma vez por todas, e como missão ultra-secreta, o caso das escutas telefónicas em envelopes de correio azul. No início as coisas nunca correm muito bem mas a experiência internacional de um agente que até já tivera uma aventura no espaço, há-de resolver todos os percalços mantendo sempre a compostura do fato e do rosto e o ar de impenetrável emoção que tanto apraz ao seu novo patrono que até preferia o MacGyver. A necessidade de proceder a investigações em pleno Chiado constitui o risco imediato. Num lugar em que qualquer homem é um alvo em movimento tornou-se claro que só se vive duas vezes e se na primeira o segredo estava nas Blond Girls, desta vez a força da razão estaria nos Blond Boys. A investigação é dura, o meio está cheio de 'oh pás!' hostis e Blond, James Blond, sente que para ter sucesso nesta operação tentacular - sem as habituais octopussies - vai ter que dar o litro e integrar-se no meio, agir de maneira aberta e confrontar cada sentido com uma nova realidade. O andar da carruagem não parece muito propício e o Presidente começa a perder a paciência, mostrando-o através da ingestão nervosa de grande número de pastéis de nata. Os jornais anunciam que o ministro deu ordem para matar. Blond, James Blond, tem que reavaliar o seu plano. Equaciona a hipótese de ir ao estrangeiro fazer uma operação relâmpago. Mas os Boys, Blond Boys, de que se destaca Ary, reúnem-se no Príncipe Real a reclamar, e o governo desmente os jornais, garantindo que apenas existe licença para matar - e não ordem - desde que se reúnam os requisitos mínimos inscritos nas trezentas e trinta e três medidas do simplex. O herói volta à estrada e sente que poderá recuperar a confiança do Presidente se conseguir pôr o seu GoldenEye contra GoldFinger. No Chiado as cotações crescem e desde a Brasileira até ao café da Fnac já todos o consideram um agente irresistível. Mas em todo o lado cresce a inveja, a suspeita e a maledicência. As forças subterrâneas, equipadas de telemóveis de terceira geração com câmaras de dois megapixels e vibra-call tridimensional, fazem a cama ao agente ao serviço do Presidente. Blanka dirige as operações transgénicas. No blogue do É bruto aparecem referências indesmentíveis a uma reunião em que o Presidente terá dito a Blond: "vive e deixa morrer". Tudo indica que Blond, James Blond, terá sido incluído nos cem mil portugueses com direito a receber o anti-viral contra a gripe das águias. A comunidade estrangeira em Portugal reúne-se de emergência para reivindicar o direito ao anti-viral uma vez que todas as estatísticas garantem que o país já teria parado se eles cá não estivessem. Blond, James Blond, fica assim na charneira de um delicado problema diplomático com ramificações em países geralmente bem comportados nestas coisas dos direitos humanos, como o Canadá, o Brasil e a Ucrânia. É neste momento que o carácter internacionalista do nosso agente vem ao de cima. O suspense é dado pela grande questão que nesta altura da acção dilacera o espectador: estará Blond, James Blond, em condições de enfrentar o homem da pistola dourada? Aqui existe uma dúvida que deve ser colocada aos promotores do filme: se a intenção é fazer uma sequela, esta é a ocasião, porque ou o amanhã nunca morre ou morre noutro dia. Segundo a prospecção de mercado, os espectadores ficariam mais satisfeitos com perseguições vertiginosas pela rua Garrett acima e alguns eléctricos descontrolados a atravessar o Luís de Camões. Na cena da decisão, enquanto Blanka discute com Blond, James Blond, se os diamantes são eternos ou não - Blond acha que sim, Blanka mais pragmática diz que são eternos enquanto duram - entra na sala Ary, armado até aos dentes, dizendo a Blanka que o mundo não chega para os dois. Blanka parece indefesa vestida apenas com uma minúscula cueca. Blond, James Blond, parece indeciso entre as paixões antigas e as mais recentes e não consegue mexer-se no seu fato às riscas muito engomado. Ary sente-se senhor da situação. Blanka num movimento ágil de mulher moderna que lê a Cosmopolitan, tira rapidamente o pequeno penso higiénico diário do interior da minúscula cueca. De facto não é só um penso higiénico. É também um telemóvel com UTMS de banda larga. Mas não é só um telemóvel, é também muitas outras coisas. Mas o que interessa para aqui é que é também uma sofisticada metralhadora de alta definição. É com ela que Blanka aponta e mata Ary. Blond, James Blond, fica chocado - mas não surpreendido - com a quantidade de sangue que Ary tinha de reserva. Num primeiro momento Blond treme de angústia. Num instante vê que só lhe resta um caminho para salvar a reputação. Lança-se aos pés de Blanka que dobra o seu telemóvel fumegante e diz-lhe: casa Blanka, casa comigo. Blanka olha para ele com carinho e diz-lhe: casar não digo querido, mas juntamo-nos... pelo menos até a lei mudar...
[Este guião foi feito no intuito, suponho eu, patriótico, de dar à mão-de-obra nacional - chamemos-lhe assim - trabalho qualificado de representação cinematográfica, colocá-lo na senda das grandes questões do nosso tempo, e criar a hipótese, nada remota, de um filme português poder pela primeira vez ganhar o Oscar para o melhor filme estrangeiro e acumular, pela primeira vez também, os Oscares de melhor actor e melhor actriz para a mesma personagem.]
Lino Centelha
abril 08, 2006
a quente
eugenio recuenco
Abraso, vermelha de sangue e raiva.
Escrevo a quente como se malhasse em ferro à boca do fole.
Mas, a palavra martelada já não molda, como gostaria, os dias que vou andando.
Não, não é prudente pensar a quente, falar a quente, escrever a quente.
Eu sei.
Fervilham as emoções, estoira o ódio, ressoam os gritos.
Escrever a quente é malhar em ferro frio...
Parece que dobra a preceito...
... e, de repente,
quebra sem jeito...
anna
abril 07, 2006
16. Chá no Deserto, de bastet
Não há cor quando o dia se cerra sobre as dunas. O azul tuareg é negro, fechado e envolve no escuro as sombras e os vultos acocorados em pontos de fogo, luz e fumo. Os Somovares. Neles fumega o chá. Pequenas lamparinas de uma civilização perdida, pequenos sorvos de menta que aquecem o frio e uma esperança qualquer.
Atravessara-se ao seu fim. Despojara-se das mulheres que fora, para agora não perceber quem era. Era só traços de areia e vento e deixara escorrer-se para lá dos limites do improvável. Nómada dos nómadas. Falava muda o que ninguém percebia. Era de um outro planeta qualquer da mesma Terra redonda, imensa e plana. Os outros tinham casa na linguagem e era vê-los acomodados nas conversas.
Quisera imolar-se pelo fim da tarde quando deitada no chão esperara que o sol lhe iniciasse a combustão e a deixasse em cinzas. Um pouco de si chegaria à cidade e recuperaria os dias no ponto em que os deixara. Fora antes tomada pelo corpo de um homem, e soubera que o único oásis possível lhe escorria em gotas pelas pernas. Não há vestes que cubram o sem pudor e não há pudor na loucura do deserto, nem véus que guardem a sanidade ou que lembrem a vontade de caminhar. Só o torpor que distorce a realidade, amansando-a até à sobrevivência, ao movimento inaudível da respiração em compasso binário.
Adormecera depois mas não dormira com ele, apenas com o seu cheiro e com o íntimo alarido de conceitos recorrentes. Nestas horas de espasmos nocturnos tudo lhe parecia mais real que nas vigílias diárias de olhos despertos. Nem sempre o presente é mais verdadeiro. Podemos ser enganados pelos sentidos exaustos e assim trocara os dias de miragens pela verdade sobejante do repouso. Estava descrente de outro resgate e por isso, quando ouviu as palavras acreditou estar morta, ou que fossem espectros desamordaçados do seu diafragma – well come back! Uma sombra de si estava de volta ou era talvez o milagre do chá.
bastet
15. Closer, o epílogo, de Claudia Sousa Dias
Os seus olhos, enormes e negros, destacam-se na pele branca, de um mate perfeito. Do rosto de Alice/Jane, emana uma expressão de melancolia, realçada pelo sorriso triste que lhe escapa dos lábios entreabertos, conferindo-lhe um je ne sais quoi de alheamento acentuado pela curvatura perfeita do arco das sobrancelhas.
Sentado no lugar em frente, o olhar azul-esverdeado do ex jornalista de obituários exprime dor e saudade. O sorriso é um esgar de amargura. Pequenas rídulas à volta dos olhos denunciam o cansaço acumulado ao mesmo tempo que, dois vincos de tristeza marcam os cantos da boca fina e de contornos perfeitos.
Os dois olhares cruzam-se examinam-se com precisão cirúrgica, sentados à mesa do café onde, seis anos antes, Alice Ayres exercia a função de waitress.
Toda a memória de emoções conflituosas explode, de repente, em ambos os cérebros: mágoa, saudade e uma estranha alegria semelhante àquela de quem chega a casa no pino do Inverno e encontra o conforto do calor proporcionado pela lareira acesa.
- Would you like to have a coffee?
O vício da Verdade contagia-os a ambos. Persegue-os. Obsessivamente. Noite e dia.
Olham-se intensamente. Uma vez mais. Tentando descobrir no rosto um do outro os sinais que lhe permitam descodificar o passado.
Ela sabe a verdade. Com as coordenadas de que dispõe não lhe é difícil deduzi-la.
Ele apenas consegue intuir um fragmento dessa mesma verdade, após tantos anos de ausência e reflexão. A sensação de que precisamente a verdade de que se julgou detentor, seis anos atrás, lhe escapa está omnipresente na mente do ex redactor de obituários. Contudo, é incapaz de distingui-la diante dos seus olhos, por mais óbvia que se lhe apresente.
Porque a sua percepção foi deturpada por uma mente vingadora.
E porque tinha em Anna o ideal de Mulher. E porque Anna defraudou esse ideal. E porque Alice/Jane jamais se comportaria com mais nobreza do que o seu ícone, a sua deusa – bela, sofisticada, independente, célebre. Anna, a Super-Mulher, a fotógrafa publicamente consagrada.
A emocional Alice, a dependente Alice, a waitress, a part-time stripper, teria fatalmente de ficar aquém.
O exame continua.
Onde foi a doce Alice Ayres/Jane Jones, agora super-modelo de uma conhecida marca de cosmética, buscar esta aura de poder e autoconfiança que, apesar da nostalgia, a impede de olhar Dan Wolf com a adoração de outrora. Um olhar firme, sem sombra de culpa, remorso ou qualquer tipo de emoção que sugira embaraço.
O que terá despoletado o cortar das amarras, naquela última noite num hotel de quinta categoria, com lençóis puídos e tapetes gastos?
Ela olha-o. Trespassa o lago cristalino dos seus olhos de água-marinha e vê: a dúvida, a insegurança e, paradoxalmente, a certeza de já não se sentir o dono da verdade.
Ela sabe que Larry não perdoa ter sido preterido duas vezes pelo mesmo homem: Dan, o redactor de obituários, escritor falhado que não tinha onde cair morto. Preterido pela esposa e pela ninfeta que então personificava as fantasias dos voyeurs solitários, vestida de prata, em cima de vertiginosos saltos agulha.
Ela sabe que o fogo do ciúme exige o gelo presente no gume da espada da Vingança…
Larry soube manipular o jogo da Verdade e da Mentira, usando apenas a parte da verdade que lhe convinha. Podando-a. Enviesando-a.
Contudo, o Tempo…
...o Tempo encarrega-se sempre de erodir a Mentira. Deixando à vista buracos fissuras…
E as marcas do Tempo reflectem-se nos olhos do jornalista.
E na mente.
Dan, entretanto, apercebeu-se que há peças que não encaixam.
O que despoletou a mudança radical de atitude, da sempre meiga Alice, naquela noite, no espaço de uma fracção de segundo? Raiva, revolta, indignação: “Há um minuto atrás estava disposta a ficar contigo para sempre…”
E qual o motivo de uma tão grande segurança face a alguém a quem supostamente teria traído?
Os olhos de seda negra, nocturnos e límpidos, julgam-no, como uma Némesis decidida a reequilibrar os pratos da balança…
Cláudia de Sousa Dias
14. Oh Captain, my Captain, por Fausta Paixão
Ora cá vai a minha fita para o concurso.
A minha grande questão andava sempre à volta da quadratura do círculo. Havia em mim a curiosidade das linhas infinitas, das intersecções, das elevações do xis e das inúmeras possibilidades das funções f.
Não me perdoava, pois, a ignorância no que dizia respeito às operações concretas, embora me saísse muito bem nas mais complexas operações formais. O que me minimizava sempre diante dos meus amigos intelectuais eram as referências constantes aos integrais e às derivadas. E embora todos soubessem o que me passava pela cabeça perante este tipo de referências o que eu precisava de saber, mesmo, era como efectuar o somatório de coisas contínuas. Em termos pragmáticos esse tipo de operações não me oferecia dificuldade, quanto mais continuidade melhor, era o meu lema. O pior era sempre a parte teórica.
Decidi, pois, frequentar aulas de Matemática no SPA (Special Pythagoric Academy), por recomendação especial do meu amigo Assis Matoso cuja especialidade era o grego.
Tinham-me dito que o prof era o retrato chapado de Apolo e que só dava lições a adultos, por isso dali só se saía para o Olimpo, mas com toda a sinalética no papo, do alfa ao ómega. Achei a ideia genial: finalmente iria perceber o verdadeiro valor de Pi.
Espantei-me por ser a única pessoa na sala, mas soube depois que o prof P. Lorca fazia sempre isso para avaliar bem o recém-chegado às suas mãos. E eu, na boca dele, tinha todas as hipóteses de vir a ter sucesso na aprendizagem. E quando o disse agitou o ponteiro de uma forma sensual apontando-me o quadro. E eu fui.
Mandou-me desenhar um circulo. Lá dentro, um quadrado. Depois quatro triângulos isósceles. Disse, então, que tínhamos obtido um octógono regular inscrito no círculo. Agora eu só precisava de ir acrescentando triângulos até obter grandezas tão pequenas que tendessem para o limite; só então poderíamos falar de integral, dizia ele, face à minha urgência em aprender: “observamos que o conceito de integral pode ser introduzido de várias formas…”
Comecei a exasperar-me: introduzido de várias formas? Para conseguir saber a área definida pela curva? Mas… através da adição de micro-grandezas?
Pus-me a pensar que o melhor seria pedir-lhe as derivadas; sempre podia propor-lhe uma tangente à curva e aí fazia a demonstração dos meus conhecimentos, pois se ele pensava que estava perante uma caloira qualquer, estava bem enganado, o anjinho. Sim, porque os matemáticos têm todos aquele ar asséptico e aquele olhar-de-carneiro-mal-morto, no que se prova que a sua maior tarefa é a reflexão pura e simples; se a coisa se complexifica também lá chegam, digo eu, mas têm de fazer inúmeros raciocínios e esgotam-se em algarismos redondos. O que me surpreendia era o paradoxo, pois o P. Lorca dizia que o inconveniente do método de exaustão é que para cada novo problema havia a necessidade de um tipo particular de aproximação. E ficava ali parado a falar do Arquimedes.
Bem, a coisa ficou mais concreta com o exercício de cálculo de um integral triplo: ali no quadro desenhou um barril e, para que eu visionasse melhor a situação, colocou-me as premissas usando a minha linguagem. Falava de um navio de carga com barris de vinho. Teríamos de achar a logística da embarcação para não se correrem riscos. Logo, eram necessários integrais triplos para calcular o volume de cada barril.
E eu a imaginá-lo de corsário, ao leme dum barco pirata… sozinhos os dois a meio do oceano, carregados de barris de VQPRD.
Ainda o ouvi mencionar a expressão da curva do barril, mas depois passou-me assim uma coisa pela vista e não tive mais consciência dos meus actos, que foram todos tangentes à sua figura. E, num impulso que qualifiquei no limite oposto ao do zero, saltei para a mesa, elevei-me sobre as meias de seda bem esticadas nas pernas e, muito direita no olhar que lhe lancei, disse: “Oh Captain, my Captain”.
F.P.
13. Roleta russa, por Artur Torrado
A cena passa-se num dado perfeito. Há um cubículo cúbico em reconstrução. Paredes sem estuque nem escuta, caídas e recuperadas de um ataque.
Uma mesa verde num chão plano. Além do dado, um baralho de cartas escritas a toda a volta com versos e infiéis. Far-se-á uma contabilidade dogmática.
Duas câmaras e várias freguesias, ou uma apenas se for bem gerida, focam alternadamente os rostos sombrios de duas personagens que podem ser dois homens, duas mulheres ou, preferencialmente, por uma questão de cotas, um homem e uma mulher ou uma mulher e um homem, para ser tão correcto quanto possível.
Admitindo que as personagens sejam capazes de dizer alguma coisa, escondem-se microfones e a câmara aproxima-se lenta mas continuamente de um rosto de cada vez. A não ser que aconteça alguma coisa inesperada. Nesse caso, os protagonistas devem ser devolvidos a instâncias superiores.
A foca deve estar imóvel e o móvel deve estar focado. Se isso não for possível, usar uma foca de plástico e deixá-la na sombra. Há uma expectativa mística.
Acima de tudo que ninguém se aperceba que existe um realizador. Para ele a câmara deve olhar de lado sem pestanejar. Só é oculto o que está à vista.
Um pouco mais abaixo ficam as luzes, junto a iluminuras do século treze. Não usar romanos nem romãs. Se não houver iluminuras disponíveis evita-se que as câmaras se desloquem acima do olhar humano. Não esquecer de desenrolar um novelo de lã de uma cor barata.
A mesa verde é pentagonal. As duas personagens esperam mais três. Ninguém sabe se vêm. É provável que isso não interesse. Tudo depende do ónus da prova.
Acima de tudo, no mesmo lugar do realizador, espera-se um acontecimento inesperado. Há cadeiras para todos: umas são genuínas, outras feitas em segunda época. A cadeira do realizador não conta mas terá escrito rodazilaer ao contrário nas costas para ser lido no espelho, como se fosse uma ambulância. Pode ser necessária. Um acontecimento extraordinário aponta para necessidades urgentes de socorro.
No nível imediatamente inferior, um pouco acima das cabeças sentadas, baloiça um pêndulo metálico de grandes proporções. Não sei para quê. Há-de ser uma metáfora difícil. Há-de haver na minha infância um pêndulo capaz de o justificar. Na superfície curva da esfera pendular estará colado um cartaz de uma promoção turística. O cartaz não deve ter mulheres nuas embora por instantes possa parecer que o cartaz tem mulheres nuas. Convém ter a sala aquecida.
Ao nível dos olhos de quem está sentado formam-se sombras oscilantes. As sombras sobrepõem-se por vezes aos rostos sombrios, tornando-os, por instantes, rostos sóbrios. Movem-se devagar imitando a câmara lenta.
À cota do plano do pano da mesa há fumo. Nada de cigarros. Apenas incenso chinês genuíno com cheiro a brócolos cozidos. A dada altura há-de cheirar a carne queimada. Talvez isso faça comover as personagens. Cheirar é como ver. Mas é mais envolvente porque é químico.
Sobre a mesa há duas garrafas de água exactamente iguais. Luso, Vitális, Serra da Estrela, Evian, Perrier, Pedras Salgadas, tanto faz. Tanto faz porque uma delas tem ácido clorídrico. A dúvida maior é se as personagens devem ou não saber qual o conteúdo da garrafa. Se souberem o drama é antes. Se não souberem o drama é depois.
Os cigarros estão no chão sob a forma de beatas pisadas. Mas as câmaras não olham para o chão. As câmaras olham sempre na horizontal: nem sobranceiras nem submissas. Fitam o horizonte à procura do tal inesperado. O perigo raramente vem de cima ou de baixo. É melhor as beatas não entrarem na história. Tudo pela dignidade.
A acção decorre a uma hora morta. A decisão é deixada ao acaso. Cada um age segundo a sua vontade. A protagonista poderá ser uma garrafa de água. Mas também pode ser o pêndulo. Ou o dado. Um dado novo é sempre perfeito. É muito improvável que depois do riso não ocorra um drama.
Diálogo exemplar:
PA é a personagem A; PE é a personagem E.
PX - O meu médico recomendou-me riso.
PX - O meu patrão recomendou-me produtividade.
Frases de reserva
PX - O meu pai recomendou-me juízo.
PX - O meu advogado recomendou-me prudência.
PX - O meu massagista recomendou-me actividade.
PX - O meu padrinho recomendou-me investimento.
PX - O meu tutor recomendou-me sexo.
PX - Na televisão recomendaram calma.
PX - Os meus professores recomendam-me estudo.
PX - O meu gestor de conta recomendou-me boas acções.
PX - O meu maior amigo recomendou-me viajar.
PX - O meu arrumador recomendou-me cocaína.
PX - O meu padre recomendou-me comunhão.
PX - O meu porteiro recomendou-me um alarme.
PX - O meu jardineiro recomendou-me água.
abril 06, 2006
12. O Cheiro da Igreja, por Elipse
Podemos ver nesta história que a minha avó me contou e à qual eu acrescentei as cores, os sons e os cheiros, um qualquer filme português ao estilo neo-realista (porque o António Silva já não é vivo; se o fosse dar-lhe-ia o tom desconcertante da comédia prosaica).
Mas é com este acto de cinema (ou argumento?) que apresento a minha segunda participação para o concurso.
Quando as alpercatas iam chinelando sobre a areia, abrandava o passo, mas se as carrasqueiras rareavam o sol castigava e andava mais depressa. Debaixo do chapéu de palha ainda tinha a protecção do lenço, atado em duas pontas debaixo do queixo, misturando-se o cheiro fresco das estevas com o da transpiração e colando-se as meias à magreza das pernas. Seguia apressada, as mãos a darem o impulso da marcha, de trás para a frente, da frente para trás. Sentia a pieira no peito e o respirar era ofegante mas já avistava as primeiras casas da vila. Começavam a ver-se os chiqueiros dos porcos, à espera da faca que separasse o toucinho para a salgadeira, que o mais dos tempos a fome roía as entranhas. Depois os palheiros, casinhas de adobe rasteiras ao chão, com telha muito gasta, as empenas a esboroarem-se gastas da esturração do estio e do salitre que soprava do suão, nos temporais invernosos. Dos poiais caíam cachos de malvas e alegrias da casa, dispostas em restos de vasos, ou metidas dentro de cestas de palma entrançada. À roda das casas corriam os moços pequenos, zurzindo latas, caras sujas e pés descalços, os paninhos das camisas a saírem dos suspensórios com que seguravam o cotim gasto das calças, transformadas pelas mãos destras das mães, que vinham para a rua ao fim das tardes – era a hora da lazeira, diziam –, sentadas nas cadeiras de vime, com a ceirinha das linhas e das agulhas, onde havia sempre um ovo de madeira para remendar as meias.
Destacavam-se os caboucos do casario, de encontro aos cerros que fechavam a vila, vendo-se no chão as fendas da terra seca. E ouvia-se o canto das cigarras. Os cães vinham ladrando ao caminho enquanto Justina se afogueava e limpava o suor com as pontas do lenço.
- Ó ti Juliana! Chegue-me daí um cucharrinho de água!
A mãe da comadre levantou-se largando a empreita e lançou a corda à cisterna, ouvindo-se o eco do balde batendo na água fresca. Justina levou a cortiça à boca e refrescou depois as mãos e as maçãs do rosto.
- Vou à Igreja, ti Juliana.
- Mode quê, filha? Hoje nã é dia de missa.
Não ia pela missa, ti Juliana, mas pelas velas. Não, não era promessa; os moços estavam bem, lá andavam guardando as ovelhas e Constantino ficara deitado. Não era homem de muita azáfama, desde que tivera de salvar uma ovelha das águas da ribeira e desmanchara as costas. Para isso lá estavam os rapazes que, na escola, não tinham futuro. O mais velho não podia, que os rebanhos precisavam de mão firme. No princípio ainda foi, mas fugia da professora e subia às figueiras, escondendo-se dos puxões de orelhas. Era mau de aprender. Os outros eram tenrinhos e a escola era longe.
Justina entrou na igreja e soube-lhe bem o contacto com a frescura. Sentou-se, aliviando o lenço, abanou-se com a palhinha do chapéu e fez as contas, mais uma vez: o António estava a mamar há um ano. Enquanto amamentava, o corpo ia engrossando, nunca sabia se era o leite que lhe inchava o ventre ou se já engenhava o próximo filho. Respirou fundo. Era ali que costumava tirar as dúvidas.
- Comadre ‘Estina!
Era a Maria da Venda, de lencinho preto em jeito de bico na cara enrugada; fazia a limpeza da Igreja e tinha ajudado a lançar água benta sobre o mais velho, quando ainda tinha o homem com ela.
-‘Tá uma calma lá fora!
- E eu nã sê? Vim por aí à pressa…
Fora a companheira dos bailes, em dias de festa. Lavavam a roupa na ribeira, de manhã, as pernas metidas na água durante horas, enquanto a espuma corria pelas pedras; depois lançavam os trapos coloridos às cordas, estendidas entre duas pernadas de alfarrobeira. À noite vestiam cores garridas e iam dançar. Constantino fazia tinir o ferrinho no triângulo, suspenso na outra mão, enquanto lhe deitava sorrisos pelos olhos, ao som do baile mandado: “Tudo certo e devagar; palminhas, mãos ao ar!”. E elas batiam as palmas acertando o passo corrido com o deles. Constantino puxava-a pela cintura e fazia-a rodopiar, enlouquecendo-a com a música dos beijos prometidos: “Palminhas acabou e ninguém se enganou!”
Justina pegou numa vela e acendeu-a, virando-a sobre o coto de uma outra. O lenço deslizara-lhe para os ombros e o carrapito empinava-se na nuca, basto e muito negro.
Das outras vezes, quando vinha na dúvida, mal entrava na Igreja sentia-se agoniada, ou pelo cheiro das velas ou pelo incenso queimado. Qualquer coisa, lá dentro, lhe despertava os sentidos.
Sentou-se de novo e esperou. Depois franziu a cara; aquele enjoo voltava; a água crescia-lhe dentro da boca e o bucho a revirar-se, a revirar-se. Fincou as mãos na barriga e depois levou-as aos olhos, escondendo o rosto.
- Que tens, mulher? Valha-me Deus, estás toda branca!
- Vem aí mais um, Maria, valha-me Deus a mim.
11. O homem que via muitos filmes, por Didas
Abril, dia 9, ano: 3056.
Em frente ao complexo painel de comandos da nave, o Capitão Ant, finalmente a sós consigo mesmo, reflectia sobre tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. A certeza de que dele dependiam algumas centenas de vidas atormentava-o. Atormentava-o ainda mais saber que cada uma dessas vidas era um ser inocente, no desconhecimento total da realidade que era a incerteza do futuro. Apesar de ter assegurado a todos, como era seu dever, que tudo agora estava bem e prosseguiam a bom ritmo na direcção de um novo planeta, a consciência de que ainda havia inúmeros perigos a ultrapassar, provocava-lhe um nó na garganta. E se não conseguisse? E se, por incompetência sua, aquelas vidas se perdessem?
Aquelas vidas era tudo o que restava do que fora, ainda há uns dias, a gloriosa raça humana. Agora, atacado e dizimado por seres alienígenas, todo o esplendor de todas as conquistas do homem se tinha perdido à velocidade de um fósforo. O holocausto tinha sido quase total e apenas uns poucos haviam sobrevivido. Mas o espírito tenaz do ser humano possibilitaria a fundação de uma colónia num ponto longínquo do universo e o ressurgimento da sua civilização grandiosa. O importante era não perder a audácia e a coragem! Cabia ao Capitão, e ele sabia-o, transmitir aos demais a confiança necessária ao bom sucesso da missão!
Bem no íntimo, no entanto, havia outra preocupação que perturbava o Capitão Ant. Só um homem nobre como ele se preocuparia assim com um assunto desta natureza, mas o Capitão era um homem nobre, daquela estirpe de homens que só existe para tornar um pouco melhor a humanidade. Por isso, amargurava-se perante a visão das mulheres da colónia que dependiam de si. Claro que havia mais homens sobreviventes, mas era por ele que todas se degladiavam. Era ele o mais apetecível aos olhos de todas. Amanda, a pobre loira inocente de 1,80m, que ainda na noite anterior tinha rondado insistentemente os seus aposentos; Gloria, a ruiva de fartíssimo busto que com ar suplicante lhe servia diariamente as refeições; Joana, a infeliz morena de longos cabelos que o secretariava e tantas, tantas outras na nave, tudo faziam por um pouco da sua atenção. Mas Capitão Ant estava consciente do delicado equilíbrio que vivia naquela fragilizada comunidade. Sabia que não podia dar atenção especial a nenhuma mulher e, por outro lado, também não as podia desprezar. O esforço que fazia então para agradar a todas sem que nenhuma suspeitasse não ser a preferida, desgastava-o e deixava-o cada dia mais exausto fisicamente. Mas a causa, essa, era nobre! Tinha que aguentar até ao limite!
Estava nestes pensamentos profundos quando uma voz atrás de si o agitou:
- Oh Antunes!
- S... s… sim… chefe…
- Os processos que lhe dei de manhã para levar ao director, já os levou ou não?
- Vai já já, chefe!
- Oh homem, então? Sempre na lua! Assim não pode ser!
Antunes arrastou-se carregando uma pilha de papéis e saiu do gabinete na sua típica cadência alternada, graças à perna esquerda que tinha teimado em crescer mais do que a direita.
- Oh pá! Que raio faz o Antunes sempre no mundo da lua a carregar nos botões da fotocopiadora desligada com aquele riso idiota na cara?
- Oh chefe, sei lá! Deve ser da miopia, com aqueles óculos de fundo de garrafa, sabe lá ele onde está a carregar!... Coitado...
- Pois... coitado...
- Ou então anda a ver muitos filmes!
abril 05, 2006
10. Como descobri que os beijos de cinema não existem, por Rosarinho
Na minha imaginação de adolescente flutuavam sempre cenas de beijos de cinema. Fechava os olhos para dormir e elas passavam à minha frente ininterruptamente: Cenas amputadas de todos os filmes de amor que eu já havia visto. Uma e outra e outra sem parar até ao fade out do sono.
E eu sonhava ser beijada como no cinema.
Queria um beijo grandioso, com a luz a incidir no ângulo exacto, a harmonia perfeita dos movimentos e o som maravilhoso das orquestras.
Queria que os anjos descessem e nos envolvessem na aura cintilante do amor mágico.
Queria um beijo limpo e etéreo para guardar toda a vida na moldura da memória.
Preparei-me para esse beijo como anos antes me tinha preparado para a primeira comunhão. Imaculadamente.
...
O eleito foi o colega mais velho da turma. Era bonito e penteado. E já tinha quase dezasseis anos feitos. As duas retenções seguidas no oitavo ano granjeavam-lhe injustamente o maior sucesso junto das raparigas. Claro que isso era mal passageiro, mas os restantes viviam entre a depressão e o desespero porque não sabiam que lhes bastava esperar algum tempo.
Faltámos a matemática e fomos para casa dele. Os pais não estavam, trabalhavam longe o bastante para garantir a segurança do momento. Irmãos não havia.
Ele indicou-me a direcção do quarto e eu entrei. Estava desarrumado. Havia roupa suja espalhada pelo chão, embalagens de donuts vazias e uma anarquia de folhas soltas já amareladas rodeava o computador. Fiquei decepcionada, não tanto porque esperasse da parte dele mais consideração pela minha presença mas pela inadequação do cenário à perfeição do momento.
Quando terminei estas considerações mentais e me fixei no seu olhar vi, pela primeira vez na minha vida, aquele brilho irracional que se nota no fundo dos olhos dos homens imediatamente antes do sexo. Ainda só conhecia esse brilho dos filmes de lobisomens, por isso fiquei assustada. Dei uma passo atrás. Ele avançou, empurrou-me para cima da cama e veio sobre mim como animal esfomeado. Gritei - “Não!” – e consegui afastá-lo. Fugi para junto da parede, o mais longe dele que consegui encontrar dentro daquele espaço confinado. Ele levantou-se de imediato e correu para mim encurralando-me com o seu corpo contra a parede – “Vieste, agora dás!” – e enquanto me manietava com uma das mãos, com a outra desapertava as calças tirando para fora um pedaço de carne esbranquiçado e entumecido que me causou repugnância. Lambeu-me o pescoço e a face e era mais nojento do que o doberman odioso da minha tia.
Reuni todas as minhas forças e fugi. Ele perseguiu-me até à porta de saída. Olhei para trás uma vez derradeira e vi-o de pé, bufando com um touro furioso e segurando as calças com a mão. Levantou os braços numa última tentativa de me agarrar e as calças não resistiram ao poder da gravidade, ficando recolhidas a seus pés. As pernas eram brancas e magras, aquele pedaço de carne continuava ali a apontar debaixo da t-shirt e a visão já não era, em definitivo, a do mais bonito rapaz da turma.
Hesitei entre sair e aproveitar a súbita fragilidade do caçador. Empurrei-o para trás.
Com os movimentos das pernas tolhidos pelas calças caídas, tentou equilibrar-se rodando velozmente os braços. No rosto tinha agora um ar assustado e o pénis balançava como aqueles bonecos ridículos que saem de caixas impulsionados por molas.
Senti-me nauseada e fechei a porta atrás de mim.
Aquela não era decididamente uma cena em que se pudesse fazer um fade out decente.
(Texto muito vagamente inspirado no filme "Cinema Paraíso" de Giuseppe Tornatore)
abril 04, 2006
9. Toda a infância cabe numa caixa enferrujada, por Elipse
Inspirei-me numa cena ou numa ideia colhida no filme
"Le fabuleux destin d'Amélie Poulain".
Sei que é um filme que dá para mil e uma abordagens mas resolvi pegar na
caixinha das memórias...
Nesse dia tinha sonhado com o pai. Dir-se-ia que andava enleada nos caminhos da reconciliação com as memórias. Ela ou a parte de si que se escondia da racionalidade.
Foi depois do sonho que sentiu desejo de voltar à casa antiga. Vestiu-se de roupas novas e recuou no tempo. Paradoxo certeiro mas eficaz nas intenções porque foi na estação do comboio que o passado começou, enquanto o cheiro das travessas da linha se alojava no sentir antigo, quase até ao silvo da locomotiva e à “pouca-terra” anunciada ao longe. A viagem deu-lhe tempo para desejar ter pressa e por isso empurrou com força a porta, depois de ter estado presa ao brilho que o sol reflectia nos vidros. Ofuscada, talvez, ou à procura da paz que lhe guiasse os passos, frente à entrada.
Estava escuro e cheirava a mofo. Lembrava-se agora que tinha prometido uma limpeza aos móveis e às paredes, mas já não sabia há quanto tempo. O que sabia era de um cheiro próprio dali, um cheiro que vinha do lado de dentro. Todas as casas têm um lado de dentro mas ela sempre lhe tinha virado as costas. E foi nessa posição que fotografou as nuvens com a imaginação, vezes sem conta, prometendo a si própria que havia de seguir com elas. Cumpriu a promessa, num dia de céu carregado, antes de desabar o temporal. Ou foi por isso que ele desabou.
Agora, porém, virada para a entrada, conseguia ver o caminho a vir na sua direcção. Era curiosa a percepção de um simples exercício a inverter a perspectiva das coisas por explicar.
Entrou no quarto e percorreu devagarinho a familiaridade do espaço, enchendo as narinas de infância. Abriu depois as portadas, devagar, e olhou para o sítio onde sabia estar pousada a caixinha. Sentou-se na cama e pô-la no colo. E assim ficou.
Antecipou a primeira recordação. Sabia que a fotografia lhe iria mostrar o vestido branco de saia muito rodada, saltitante dentro daquele momento que o pai captou num dia de festa.
“Ela gosta de andar aos saltinhos pela casa e de furar os bolos quando saem do forno. E não se queima. Mas não gosta de ajudar a mãe nem de arrumar os brinquedos depois de estar uma tarde inteira a imaginar personagens”. Era assim que o pai dizia às visitas.
Contudo ela sabia que gostava de muito mais coisas.
Gostava de soprar serpentinas para as ver soltarem-se, livres; de encostar o dedo com cola à madeira ou às capas dos livros para sentir a proximidade das coisas; de ver a pedra a fazer ricochete nas águas do charco e sorrir da irreverência de um objecto pesado a soltar-se em voo. De colocar no colo uma pilha de livros para começar a saborear o primeiro, sobre o cheiro das folhas dos outros. E de deixar as suas personagens nos lugares das histórias, não fosse perder-se a vida que lhes criara.
Abriu a caixa. Olhou os objectos um por um e levou o búzio ao ouvido. “Pai, deita-te nas ondas e pousa-me nas tuas costas. Faz-me sentir que estou a nadar, que as águas são transparentes e eu hei-de dar-te amor pela vida fora”.
Depois o boneco de barro que tinha enfeitado os presépios, ano após ano. Tantas vezes brincara com ele deitando-o nas palhinhas para o proteger do mal. E tanta era a solidão herdada que tinha de olhar as caras dos outros no escuro do cinema; e os abraços dos outros dentro dos carros, ao sol-posto; ou andar pelas ruas cheias de gente, ao domingo, para lhes ouvir as vozes. E sentia-se quase como a figura feminina de Renoir – estava no centro mas a ver de fora. Por isso via como o passar do tempo a tinha feito recusar o enleio do todo e como as horas passadas à mesa eram sempre as mais penosas por estarem juntos e em família. “Jesus faz com que eles se dêem bem e não discutam”.
Pegou na conta de vidro verde e sentiu, através dela, o pêlo branco do gatinho de corda trazido de um país frio. E na caixinha de baton, a cheirar a maquilhagem velha, junto dos brincos de pendentes pretos com lantejoulas a lembrar a tia. Tomara-lhe a entoação e dizia como ela, enquanto fazia falar as personagens de plástico sem cabelo “Nunca existe a felicidade completa”.
Pegou também no lenço roxo que a mãe usava e cheirou-o de novo. E sentiu nele a alegria dos fins de tarde, quando a mãe inventava esconderijos pela casa à espera que ela a descobrisse; riam-se as duas, riam-se tanto… até que a mãe dizia “O que será que está para acontecer?” Depois o pai chegava e não havia mais brincadeira.
Foi nessa altura que deu consigo a limpar as lágrimas ao lenço roxo dos dias frios.
Depois fechou tudo, caixa, janelas, memórias e por fim a porta da entrada. E foi mais uma vez de costas para a casa que partiu, ao ritmo das nuvens.
Palavras em Linha
abril 03, 2006
8. A Mutilação do Sonho, pela Filha da Patroa
Dezassete horas.
Como sempre entrei na sala de cinema com a sessão prestes a começar e, pela décima vez nesse dia disse:
- Pede-se o favor de desligarem os telemóveis e manterem silêncio durante o filme. Pipocas e refrescos vendem-se na entrada. A gerência agradece.
Que emprego tão aborrecido... e eu nem sequer gostava de cinema...
Como não tinha mais nada para fazer sentei-me numa cadeira vazia na fila da frente a descansar as pernas antes de regressar a casa. Acho que quando acabou a publicidade e finalmente começou o filme eu já tinha adormecido. Malditos anti-depressivos!
(...)
Acordei com gritos! Gritos, pânico, choro e sangue a salpicar por todo o lado. Gotas quentes de sangue de criança batiam-me na cara e ouvia-se o som infernal duma serra eléctrica pela sala. Já não havia qualquer filme na tela e a sala estava escura.
Escondi-me num canto e, com a ajuda da lanterna, consultei o folheto que tinha no bolso. Naquela sala, àquela hora, devia estar a passar o “Massacre no Texas”. Oh meu Deus! Eu já tinha visto aquele filme! O homem da serra eléctrica tinha saltado do ecrã!
O massacre continuava. Os gritos eram cada vez menos audíveis. Eu continuava escondida, será que me ia conseguir salvar? À medida que os gritos diminuíam, cadáveres e partes de corpos amputados caíam perto da cadeira onde me encontrava abaixada.
Continuava a ouvir a serra eléctrica, mas as vozes humanas estavam reduzidas a um homem que implorava misericórdia... Uma risada sádica e... ZÁS! Uma cabeça aterrava duas filas à frente da minha.
O homem da serra eléctrica começou então a aproximar-se. Conseguia ver as suas botas cheias de terra que transformavam em sujidade poças de sangue humano.
“Vai-te embora!” – pensava eu... Mas ele continuava ali, agora silencioso. O que estaria a fazer? Eu nem ousava mexer-me. Pelas minhas contas devia faltar uma meia hora para acabar o filme... –“Por essa altura ele deve voltar para a película” – pensei.
Mas eis que, de súbito, a serra eléctrica voltou à acção. Num único movimento cortou todas as cadeiras à minha frente. Eu estava agora a descoberto e ele olhava-me feliz, como se o Natal tivesse chegado mais cedo.
Pedi a Deus que guardasse os meus pais e que fizesse com que o meu noivo morresse também para me encontrar com ele no céu. Preparei-me para morrer. Fechei os olhos e ouvi a serra a aproximar-se. Mais, mais, cada vez mais... até que...
A sala toda rompeu em aplausos.
Acordei.
Tinha sido apenas um sonho.
Pensei, feliz e aliviada, no meu noivo. Mas não, o meu noivo só existira no meu sonho... eu continuava feia e desinteressante e nem o homem da serra eléctrica ia querer casar comigo.
Ainda hoje, sempre que acaba o meu turno ao fim da tarde, sento-me na fila da frente duma sala de cinema à espera que aconteça tudo de novo.
(Inspirado no filme "The Texas Chainsaw Massacre" de Marcus Nispel)
abril 01, 2006
O vosso "acto de cinema" será transformado numa obra de cinema!
1° Prémio Escritor Famoso - Cineclube de Aveiro - O Navio de Espelhos
O autor do argumento mais pontuado pelo júri do Concurso terá a oportunidade de ver esta sua criação adaptada a uma curta-metragem. O filme será realizado por Ivar Corceiro (ou outro realizador que o Cineclube designe).
Ou seja, o vosso acto de cinema será transformado numa obra de cinema!
O Navio de Espelhos fará ainda a Oferta de um Livro.
2° Prémio Escritor Famoso - Cineclube de Aveiro
Ao autor do texto com a segunda melhor classificação será oferecido um conjunto de DVD's.
Prémio Escritor Bairrista - Cineclube de Aveiro
Oferta de cartão de sócio e anuidade do Cineclube.
Este prémio foi criado a pensar nos aveirenses. Ele será atribuído ao concorrente da Região de Aveiro que obtenha melhor classificação.
Nos próximos dias divulgaremos informações adicionais sobre a curta-metragem, a relação pormenorizada dos restantes prémios (livro, dvd's), assim como a constituição do júri e método de votação.
março 31, 2006
7. Uma Questão de Genes, de Joaquim Pavão
O raio do pupilo não entrega o livro e o irmão, meu de sangue, morto ainda fede no meu nariz. Enterrem-no, as larvas agradecem e a terra fecundará um fungo qualquer.
Sai o caixão. O tuberculoso vai cair. Filho da puta, carrega um caixão para o deixar cair. Que lhe foda a merda do pé!
Agora discutem, os irresponsáveis. O caixão devia ser caro, e o joelho a sair do buraco mostra a falta de calças. Aquecem o coração arrefecendo o resto.
Quatro tiros. Lá se foi o tuberculoso. Faltam três. Puxo do cigarro. Pedem-me ajuda para o caixão.
- Pai! Quero fazer xixi.
Raios do moço! Só conheci a vizinha gorda do sexto andar. E essa nem mãe podia ser. Rebentaram-lhe os ovários com um tiro perdido. Era para o amante, mas ela estava por cima. Nunca mais repetiu a posição não vá o diabo tecê-las.
Safo-me do caixão, mas carrego uma pila de genes desconhecidos.
Enterraram-no. Finalmente e levou companhia. Não é qualquer um que vai acompanhado. O caixão ia mal fechado mas o verão vai no pico. O de cima ia vestido com alguma ventilação. Mesmo tuberculoso aguentou as primeiras três a respirar. À quarta decidiu parar. Poupou o velho cão, de gastar mais uma.
- Pai, quero fazer xixi.
E dos mortos ninguém carrega a minha pila.
Joaquim Pavão (site)
6. Gilda, de Hipátia
Começa a encher o espaço de almofadas de penas. Espalha velas perfumadas, pinta no tecto estrelas. Escolhe um pau de incenso perfumado, talvez maçãs verdes, ou qualquer fruto. Semeia confeitos doces e coloridos, ou então pétalas de flores. Faz uma cama no chão. Põe a tocar uma música com guitarras e cítaras.
Depois pára de repente... A câmara pára com ela.
Eles vão para a cama com a Gilda, mas acordam comigo.
E então, depois de ter o cenário completo, a figura feminina começa a destrui-lo com o mesmo afinco com que o inventou.
Nada faz sentido!
O cabelo ruivo voa em todas as direcções, as luvas perdem-se por trás das almofadas, uma delas cai sobre uma das velas, chamuscando-se ligeiramente...
Tanta gente presa ao sonho projectado num écran branco, esquecendo-se que, por trás do sonho, está uma pessoa de carne e osso.
A câmara recomeça o percurso, aproximando-se mansamente do rosto agora em repouso, a fabulosa cabeleira a beijar-lhe as faces.
Há dias em que os minutos são horas e sinto a alma parada no tempo à espera não sei de que milagre para pedir licença para voltar a nascer.
E o plano começa a abrir-se, lentamente…
Há dias em que queria ser caracol, tartaruga, búzio, levar a casa às costas e poder fugir para um qualquer ventre e deixar o tempo passar. Esquecer a Gilda. Ser apenas eu.
The End
Escrito por Hipátia, Voz em Fuga
5. Estou sim? Deus?, de Marte
[JMD] - Um telefone Dourado?
[AW] - Sim e o melhor é que tem uma linha directa para Deus. [Dando um gole do seu Dry Martini]
[JMD] - Uhmmm... estou a ver... Mas o que é que eu poderia ter para falar com Deus?
[AW] - Descobrirás com o tempo. Mas também não precisas de te preocupar com isso. Tens todo o tempo do Mundo. És imortal. És um Deus. És um mito. Não existe tempo para os Deuses...
[JMD] - [Risos] Tudo bem. Muito obrigado pelo presente. Tentarei dar-lhe uso.
[JMD]- Aquele gajo é mais alucinado que eu... uma linha directa para Deus... sim pois... [tentando sintonizar o rádio] Maldito rádio! [dá-lhe um murro].
- Se calhar devia telefonar para Deus e pedir-lhe que parasse com a merda da chuva... vai lixar-me os estofos do carro, para não falar do meu cabelo. Melhor, devia pedir-lhe antes umas asas para voar por cima das nuvens, por cima de todos até ao topo do Mundo. Yeeeahhh... [Pausa] mas se ele nem se quer conseguiu salvar aqueles pobres Índios Shaman... ou se quer conseguiu impedir que um corpo com 5 anos de inocência tivesse de assistir a tamanho banho de sangue, de vida a escorrer pelo alcatrão negro... Talvez pedir uma asas, seja demais.
- "This is the best part of the trip... this is the best part... that I really like... yeahh..." Se ele tivesse impedido aquela colisão, hoje não seria assombrado pelo Deus Fantasma que me persegue, que me alucina... não teria sobre o que escrever... não seria reconhecido...
- Também para quê. Só me reconhecem pelo meu corpo, pelo meu peito bronzeado, pelas minhas calças de cabedal... pelo meu car***o e não pelo que escrevo. Todos me querem chupar... sugar-me a alma... até ao último centavo e depois roerem os meus ossos até me transformar em pó e me juntar aqueles pobres Índios... Hey DEUS????? [Grita, pegando no telefone] Estás aí? Eu sei que estás... [Pausa] Que tal planearmos um Homícidio... ou começar uma Religião... [Bebe o que resta da garrafa de seguida e atira-a para a berma da estrada] Cabrão de merda... Vai-te lixar... "I am the Lizard King... I can do anything..."
[Abre-os subitamente e vê dois faróis incidindo na sua direcção]
- MERDA! [Dá uma guinada no volante e despista-se contra uns cactos à beira da estrada batendo com a cabeça no volante]
- Ouch... Tás a olhar para onde estúpido? [Olhando para o telefone que estava ao seu lado] Já que não me ajudaste podias ao menos ligar para um reboque nos vir buscar... Aqui tens... [Atirando uma moeda contra o telefone] Isto deve chegar para pagar a chamada...
"This is the...... End. Beautiful friend..."
By: Marte P#$% da Loucura e Amor & Guerra
Cena baseada na história de James Douglas Morrison, e no seu célebre encontro com Andy Warhol que lhe ofereceu um telefone dourado, que Jim aceitou mas deu a um indigente assim que se viu na rua. Se ele tivesse ficado com o telefone talvez fosse este o resultado final...
Desculpem alguma linguagem mais "feia"... mas teve mesmo de ser. Usei também algumas frases/versos célebres de Jim.
março 30, 2006
4. (sem título), de J.P.
Olhos esbugalhados, no peito arquejante as mãos crispadas. E, ora corria ora caminhava muito hirta, fixa num ponto preto adivinhado de longe. A água gelada fustigou-lhe a cara e nem sentiu. Saia levantada sobre o corpete, os colotes ensopados em sal e areia, e aquela vontade enlouquecida e férrea de prosseguir, na recusa da perca daquele bocado de passado.
Estacou no agora o tempo parado, respiração e gestos controlados. Ajeitou a saia preta, passou os dedos sobre as madeixas descompostas, e deixou as ondas lavarem-lhe as mãos presas de alma, enquanto os pés se tornavam suavemente parte de areia como partículas polidas de universo.
Tocou ao de leve o pé do piano, e deixou-se levar nas patas das Fragatas, planando sobre os penhascos esverdeados. Seria então quando as nuvens lhe tocassem o olhar, que se deixaria cair. Sabia-lhe bem a brisa molhada, o som das asas embalado em forma de pernas deitadas e quentes, entrelaçadas. A vontade de manter as pálpebras encerradas, a vontade de as abrir. O aconchego dos linhos com cheiro a ferro quente de carvão, as Prímulas delicadas no jarrão, os pés de ervilha na janela.
Contemplava as cercas novas, o medo e a curiosidade de menina, que já fora, mas que por dentro nunca cresceria, segredo só dela emudecido em forma de palavras que se recusava a dar a escutar. Arfou um pouco mais entontecida, e o ponto preto lá no fundo a ficar desfocado, entre o limbo acusador do consciente e do inconsciente.
Deixou-se escorregar, enrolando as algas na passagem, de encontro ás vagas que lambiam a praia, rastos de dedos na areia ensopada, o vestido casco escorregadio, uma mão que volteia à procura do ocaso, o pé do piano encontrado, o corpo carcaça fendida inerte e enclavinhada.
Içou-se devagar, o lado esquerdo do coração a dizer que sim, o outro lado que não, e devolveu ao mar lágrimas sem som, agora rio luminoso em fim de dia.
J.P.
março 29, 2006
Escrever sempre foi um desespero da alma
Ah. Escrever sempre foi um desespero da alma. Ah as palavras dançando harmoniosamente ao som da vida. Está tudo lá. Tudo lá. Decidi que escrever passaria a ser um acto tão egoista quanto possível. Não quero mais saber de fama.
As minhas desculpas pela invasão vergonhosa deste espaço e
eventualmente
do vosso tempo.
Wilson T
3. (sem título), de Pirata Vermelho
“The horror...” “The horror...”
O cheiro de terra molhada e escura, envolta em neblina quente, acentuava a expressão divina. O sangue borbulhava-lhe na garganta, aberta à frente, marcando o tom grave e arrastado do que dizia e matando-o devagar, num misto de sufoco e pasmo.
De repente pôs-se de pé e fazendo cessar o engasgo que lhe misturava as palavras, interrompeu o que restava de Conrad, olhou em transparência o soldado-carrasco e exclamou ‘You are a hero, boy!’; apanhou-o pela garganta seca por dentro, num aperto metálico, prolongado mas sem estrebucho e estrangulou-o sumariamente sem olhar a alteração; só com uma mão, na inércia que tolhera o iniciado semi-deus, filho de plebeu, apenas semi-vivo num estupor insuportável.
Fora, ali dentro, a profundidade da floresta densa acolhia o tom cavo da elegia de um povo eterno dedicado à matança.
“Mistah Kurtz, he dead”, ouviu alguem dizer, sentado na pedra da porta de uma casa mais antiga do que tudo o que tinha sido seu, cuja memória só agora começava a fazer História. Então prosseguiu, certo e determinado,
"I took my place opposite the manager, who lifted his eyes to give me a questioning glance, which I successfully ignored.”
-------------
Um ‘acto de cinema’, feito de uma sequência de "Apocalypse Now", de Francis Coppola.
Citações de "Heart of Darkness", de Joseph Conrad.
-------------
-Pirata-Vermelho-
2. (sem título), de Fatyly
Título não tem...os filmes não digo, mas descobrirão e se for preciso(...).
Olhou o conta quilómetros e de novo agarrou-se à sua enorme vontade: tê-la de novo.
O dia despertava e a chuva parecia não incomodá-lo. Na mente o mesmo pensamento – ela, ela, ela e a interrogativa do sim? Ou não? Parou na berma da estrada. Aconchegou o blusão e de mãos nos bolsos deu alguns passos p’ra lá e p’ra cá...sim? ou não? Numa luta de dias, de horas!
Passou a mão pelo cabelo como saturado de tanta incerteza de sua autoria, quando a tinha deixado sem qualquer explicação. A chuva não lhe deu tréguas e deixando um trilho na lama... fez-se de novo à estrada.
Sete da manhã acordou com o toque do farol. Estava frio! Sabia que seria mais um dia de trabalho, mais um dia sem o ver, mais um dia preenchido pelo barulho infernal daquela fábrica! Puxou a t-shirt p’ra baixo. Enrolou os cabelos, prendeu-os com um lápis no mesmo ritual, sem tirar os olhos da janela. O mar estava crespado e a chuva caía. Saltou da cama e foi tomar um duche. A água do chuveiro aconchegou-a como tantas vezes o fez aninhada no corpo dele. Levantou o rosto e deixou que o chuveiro lhe lavasse a alma, de olhos semicerrados chorou. Fechou a torneira, enrolou-se na toalha e vestiu-se, sem parar de sentir o olhar atrevido mas tão meigo que vinha da cama, olhar que a intimidava mas que tanto amava.
Encostando-se à janela, trincou a torrada e sorveu a chávena de leite! Sabia que seria mais um dia de trabalho, mais um dia sem o ver! Foi trabalhar!
Já na fábrica, de macacão vestido e de boné vermelho, não sabia andar, saltitava! Sem mostrar a alma, mostrou o seu BOM DIA com quem se cruzava, como se o cumprimentasse a ele, só a ele e para ele.
Olhou o relógio, oito e trinta. Já estaria a trabalhar. Sim? Não?
Desligou a torneira, embrulhou-se no seu roupão branco e ainda quente voltou-se a meter na cama deitando-se de lado, com a cabeça apoiada na mão...como era linda até no dormir mas reparou nas lágrimas que caiam dos seus olhos. Meigamente puxou-a p’ra si, abraçou-a cruzando as suas mãos nas suas costas... não chores meu amor! Abriu os seus belos olhos castanhos, sorriu, passou-lhe a mão pela cara ainda húmida os dedos pelos cabelos grisalhos...e sussurrou...foi um pesadelo.
Então...”Dança comigo”...e a chuva tamborilando nos vidros da janela entoou a melodia dos seus corações como a dizer...um bom fim de semana!
FIM
março 28, 2006
1. a morte de olhos abertos, de Ivar Corceiro
Um corpo nu entardece na ponta nervosa de um cigarro. Linda mastiga sorrisos e depois diz-me que posso dormir com ela. Dormir mesmo, insiste, que sou o último desta noite, a não ser que apareça um taxista em fim de turno, e encosta-se para trás sobre o sórdido divã. Os seios abatem em godé e servem de cinzeiro a algumas cinzas esvoaçantes. São borboletas, penso antes de perguntar o que é que eu sou em último esta noite, que gostava de saber como ela chama aos clientes. Mastiga mais um sorriso, e diz que a morte de olhos abertos. Nós somos a morte de olhos abertos. Tenho um selo nas cuecas que paro de vestir. É desconfortável a pessoa com quem fizemos sexo chamar-nos morte quando ainda estamos a vestir as cuecas. Talvez não me apeteça dormir aqui.
Acabo o uísque que Linda me serviu quando cheguei. Serve-me sempre um uísque quando chego, talvez para que alguma doçura faça também amor connosco. Pouso o copo ao lado do cadáver duma maçã oxidada pela noite, e acabo de me vestir: as cuecas, depois umas calças frias, depois uma meia rota e uma boa, depois uma camisa e uns sapatos que resistem a calçar os pés. Enrolo ainda uma gravata que guardarei num dos bolsos do casaco. Sinto-me mais nu que Linda, assim vestido, e ela pergunta-me se não fico. Que não, minto, que tenho muita coisa para fazer. Linda abraça-se em posição fetal. Então que me vá embora já.
Menti-lhe e ela sabe que eu sei que ela sabe que lhe menti. Isso mesmo. Não tenho nada para fazer. Apesar de nunca lhe ter dito acho que também sabe que nidifico ainda num casamento cansado, num emprego cansado, num corpo cansado. Ela estimula tantos corpos como o meu que tem que saber. A morte é só uma. Só tem um corpo. Acho. O que Linda não sabe é que lhe dei todo o dinheiro que tinha como pagamento, que vivo do outro lado da cidade e não tenho maneira de apanhar um táxi, e que na verdade até precisava de dormir aqui. Visto o casaco e guardo a gravata no bolso. Tenho que ganhar tempo. Pergunto se quer que eu limpe a bacia com água que está no chão, aquela que serviu para ela me lavar o falo quando cheguei. Que não, expele. Que me vá embora. E vou. Sou uma morte serôdia, talvez.
Um homem pálido estaciona um táxi parcialmente sobre o passeio, na diagonal. Talvez esteja bêbado. Sai e manca até um quiosque no meio da avenida, no meio da noite, no meio duma enorme ausência. Que quer uma cola qualquer, e prolonga o olhar e as palavras sobre a empregada. Ele não está bêbado, está só triste, está só só. Eu aproximo-me e ele afasta-se, mas sem medo. Também sem expressão. Talvez sem nada, só uma cola de lata numa mão. Ela agradece, que a noite anda muito perigosa, e eu engulo a discordância. Anda, anda. Posso dar uma olhadela num jornal? Diz que sim. E eu leio que aumentou a violência com prostitutas de rua, que vários homens se acham o ideal próximo presidente do país. Fecho o jornal, que chega.
Daqui vejo a janela de Linda. A luz ainda está acesa e sua sombra ondula nas cortinas. Deixou a posição fetal, deixou-se nascer outra vez para o resto da noite. As minhas mãos agarram o jornal fechado, os meus olhos esvoaçam até ao corpo nu de Linda, as minhas pernas movimentam-se involuntariamente. Volto atrás, sou um cão fugido do dono. Subo as escadas que me elevam ao céu. Bato três vezes à porta com os nódulos da mão direita. Ela não abre e bato mais três vezes, com mais força. Agora abre. Parece-me mais velha do que há cinco minutos atrás. Vou trocar a água da bacia, diz ela enfastiando a voz. Que não, que afinal quero dormir ali. Só. Os olhos verdes de Linda socam-me, e é estranho, que uns olhos verdes deviam ser incapazes de socar alguém. Que entre, diz-me enfastiando mais a voz, mas que durma no sofá.
A sala é uma espécie de jardim estéril, Linda é uma espécie de magnólia seca, a noite é uma espécie de jardineira embriagada. Alguém bate de novo à porta três vezes, mas não sou eu. É o taxista, grita Linda, e não chega a abrir que ele força a entrada. Tem o cabelo rapado dos lados e uma lata de cola numa das mãos, tem uma pistola na outra. Só não trouxe palavras. Substituiu-as pelo ódio e angústia que traz no olhar. Aponta-me a arma e dispara. Vou morrendo devagar. Sou a morte de olhos abertos. Obrigado. Acho eu.
Baseado no filme "taxi driver", de Martin Scorsese [1976]. Por Ivar Corceiro.
Ciclo Grandes Homenagens - I. The Tramp, por Hipátia
aqui
Charlie Chaplin apresenta-nos uma das primeiras vozes discordantes sobre as venturas do progresso. O pequeno espezinhado que nem um cigarro pode fumar sem que, em grande écran, lhe surja a imagem do patrão, qual Big Brother, remetendo-o de volta para o seu trabalho de rotina, a prisão dos gestos repetidos até se transformarem em reflexos espasmódicos, uma doença. E os ricos ficam mais ricos e o pobre vagabundo, rodeado de muitos pobres vagabundos de uma época de recessão, enfrenta a miséria maquinizada. Um senhor, tão grande que enfrenta a fome e a prisão, que se enfrenta a ele mesmo no ring de boxe, numa coreografia de murros contra o destino. O destino da pobreza ao toque do gongo. Não por ele: para arranjar dinheiro para a sua amada. No fim ela vê. E vê-o a ele, ainda que, mais do que os olhos, seja o toque da pele que reconhece, enquanto olha para aqueles imensos olhos cheios de pena, de dor e de esperança. Em silêncio ainda. E a música por trás. O vagabundo que parte sempre a caminho do destino, com uma bengalada no ar. Mais vagabundo hoje do que nunca, comendo atacadores para mitigar a fome, sem perder a esperança num novo dia.
O bigode. O pequeno bigode que abandonou depois de muitos anos. Matou-o com o som, levou-o apenas para um filme ainda, numa caricatura visionária ao que vozes endoidecidas do outro lado do Atlântico prometiam ser a redenção da raça. Será que Hitler alguma vez viu "O Grande Ditador"? Será que se reconheceu no ridículo da figura embigodada que dança aos pontapés ao mundo?
E os olhos. Grandes, aguados, cheios de ironia. Mas também cheios de uma vontade de pôr no celulóide o melhor de si: a criança que sobreviveu à fome, mas que não soube sobreviver à abundância, transporta para o mundo dos sonhos a esperança que perdeu algures. Os olhos estão lá ainda. A preto e branco. Claros, esclarecidos, cheios de fome por um mundo que não compreende ou, talvez, compreenda bem demais. Ficam em close-up, encarando o seu amor, ao som de música. Bela música. Música iluminada que nos enche de promessas de um dia, um qualquer dia, que será melhor.
V Edição do concurso O Escritor Famoso - Actos de Cinema
Edmundo Cordeiro
Eu sei que é impossível escrever imagens sonoras. Mas peguem na vossa experiência mágica de ser espectador de cinema, e ofereçam-lhe o vosso acto de cinema possível. Sem audio-visual, como criar actos de cinema? Pensando imagem, amando imagem, esperando imagem, dirigindo os olhos.
Seleccionem o filme da vossa vida e acrescentem-lhe um novo acto. Envolvam-se com aqueles heróis de cinema que ousaram piscar-vos o olho. Façam-nos sair da tela, qual Cecilia na Rosa Púrpura do Cairo, para voltarem a lá entrar diferentes, ou mergulhem vocês no universo deles e deixem que eles vos transformem em radiação.
Imaginem realidades e imagens e fusionem-nas. Criem sentidos. Inventem diálogos.
Mas não esqueçam que se trata de um acto de cinema. A câmara fixa a personagem, de frente, de lado, de um ângulo de cerca de 45°, ou de costas. O olhar da câmara em relação com o olhar da personagem. Qual destes olhares será mais nítido? (a personagem pode sempre tentar furtar-se a que a expiem e captem)
Sintam-se livres. Experimentem. Mas criem (ou, pensando nas palavras de Manoel de Oliveira, recriem) o vosso Acto de Cinema de Autor.
Todos poderão participar (bloggers, não bloggers), podendo cada autor enviar 3 textos. Os bloggers que têm mais que um blogue, poderão usar diferentes nick names, mas agradecemos que respeitem o número limite de textos por autor.
Todos os concorrentes devem editar o seu próprio texto no blog O Escritor Famoso. A organização do Concurso será responsável pela uniformização da edição (e terá todo o prazer em esclarecer e apoiar aqueles que sintam alguma dificuldade). O login e palavra-passe são os mesmos: efamoso.
Nota extra: A organização ainda anda a pensar no prémio para o/s vencedor/es :))
Amigos, deslumbrem-nos!
Adenda: A organização deste concurso, considerando a petição que ilustríssimos amigos do Escritor Famoso subscreveram, aumenta para 60 o número máximo de linhas por texto