A IV Edição do Escritor Famoso
O meu signo da semana passada começava assim: "Possibilidade de encetar novos caminhos; alguns assuntos e problemas serão erradicados da sua vida dando campo a novas perspectivas".
As previsões eram tão animadoras que me fizeram lançar na semana com o maior dos optimismos. Na expectativa de um tempo alegremente incerto, e apesar da poeira que tinha assentado durante a noite, levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância, à procura de inspiração para os novos projectos que a promissora semana esperava de mim. Durante a caminhada começou a chover. Mesmo tendo um pó desgraçado à chuva, aguentei os instintos e percebi que era um sinal dos céus. Deixei a casa dos espirros e voltei à pressa para Lisboa pensando que se a chuva me livrasse do pó eu ainda tinha uma possibilidade de ser o escritor famoso.
Passei por Fátima onde deixei uma vela das caras e comprei uma mão de cera onde consegui encaixar, com alguma dificuldade, diga-se, a minha MontBlank com que assino as teses e os cheques. Aproveitei para comprar também um terço para pendurar no espelho retrovisor, junto ao DVD virgem que uso para iludir os radares da polícia, porque desde que deixei de ter seguro contra todos os riscos tenho andado mais preocupado com os loucos que andam por aí ao volante.
Cheguei a Lisboa ainda a tempo de votar mas tive alguns problemas. O presidente da assembleia recusou a minha permanência naquele local com a minha mãozinha de cera, pois podia ser entendida como um símbolo partidário e estar eu, por isso, sujeito a uma coima. Pus a mão no carro e tive que votar com uma Bic já em adiantado estado de decomposição. Uma lástima. Com uma esferográfica reles daquelas eu não poderia votar dignamente no meu partido e por isso votei noutro.
Ao chegar a casa a noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a televisão. Os computadores do estado tinham avariado e os jornalistas deram os resultados de há quatro anos para posteriormente se poderem retratar pelo lapso. Mas não foi preciso.
Aborrecido por estar a ver um programa repetido fui escrever uma carta à Insónia. As coisas andavam mal há muito tempo mas o meu signo dizia: "É altura de colocar um ponto final em relações afectivas que não lhe trazem estabilidade, apenas com o coração livre poderá almejar por melhores dias". Imitei o tom da carta à Sandra que tinha usado com sucesso há uns anos para me despedir da dita. Custou-me um bocadinho porque ao fim de seis meses de namoro posso dizer que já estava numa espécie de prólogo ao coito. É o que se chama desperdiçar um investimento. Mas o meu signo era muito claro.
Na manhã seguinte cheguei cedo ao trabalho. "Alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui" era a password da semana para entrar no refeitório e conseguir ter acesso à máquina de café. Até a menina Graciete sentiu o meu ar triunfal pois durante a manhã mais não fiz que ostentar a minha pose de bafejado pela fortuna dos céus e da conjugação dos planetas. No segundo café da manhã queimei-me. O dedo não arde, apenas dói. A Graciete tira outro café e pergunta-me o que me traz tão bem disposto. Falo-lhe do meu signo que diz: "não tenha medo do futuro." Ela fica de facto interessada. A vida é bela. As coisas estão mesmo a mudar.
À tarde falei com o Profírio, um colega meu que é primo do famoso escritor Jorge Rebelo Tinto, e perguntei-lhe qual era a distância de Lisboa a Aveiro. Disse-me que era a mesma que de Aveiro a Lisboa. Também me informou que de Lisboa a Aveiro demorava quase o mesmo que de Aveiro a Lisboa. Fiquei contente porque isto já eram dados importantes para por em acção o meu plano.
Na terça-feira a Graciete trazia um perfume novo. Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera do balcão onde alinhava as chávenas acabadas de lavar. Talvez por isso quando o patrão me chamou e me perguntou porque não estavam ainda acabados os documentos da qualidade que me tinha pedido eu lhe tenha respondido enigmaticamente: Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Deu um urro muito estranho, mesmo para uma pessoa como ele, e eu tive que ir tomar outro café para desanuviar. Para meter conversa disse à Graciete et in Arcadia ego e ela ficou a olhar para mim com um ar semelhante ao do patrão o que me deixou preocupado com as consequências inesperadas da inclusão da literariedade nos assuntos do dia a dia.
É aborrecido dizê-lo mas no dia seguinte não consegui evitar pensar enquanto acordava com uma renovada dificuldade: mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Pensei como é que podia evitar ir para o trabalho. Tinha cerca de setecentos papéis, quase todos iguais, para olhar com a máxima atenção antes de seguirem para os arquivos que guardavam a esplendorosa qualidade do nosso fabrico. Resolvi arriscar. Pus-me a debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. O resultado final seria o mesmo. Só por muito azar alguém alguma vez haveria de olhar para aqueles papéis. Uma improvável auditoria. E havia mesmo assim a hipótese de o auditor estar com o mesmo tédio que eu e olhar com interesse para os papéis sem de facto ver nada, acenando gravemente a cabeça em sinal de assentimento. A qualidade. A qualidade. Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita esta cedência da minha escrita à desonestidade.
Há momentos em que paramos. Subitamente. Desta vez foi por falta de gasolina. Cheio de pressa passei a área de serviço de Leiria com o ponteiro encostado mas pensando que ainda dava para mais quarenta quilómetros. Qual nada. Poucos quilómetros depois parei.
O dia tinha começado mal. Uma carta no correio dizia: reaviso. Prezado usuário, até a presente data não consta dos nossos registros o pagamento da sua conta/fatura do mês anterior. É mau de mais. Perseguição, pensei eu. Resolverei isso mais tarde. Tal como os problema com o patrão, com a Graciete, com o Profírio e com o auditor... Há sempre um tempo próprio para cada coisa.
Tinha pensado entrar no Navio dos Espelhos como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início. Mas o mundo inteiro estava contra mim. O Bush ao invadir o Iraque tinha feito disparar o preço do crude e com isso o preço de gasolina e com isso a minha ideia de poupar e com isso o depósito do meu carro sempre a ser atestado no limite.
Quando cheguei, às tantas da manhã, ouviam-se Les Voix du Silence. Percorri cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhei os livros caiados de pó de casa. Pensava: Seila quem é que votou em mim! Quem teria Paixão pelo meu texto? É terrível estarmos na ignorância do nosso destino.
Voltei para a casa do pó. O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.
Automedico-me com o signo para esta semana: "A conjuntura é muito favorável para os nativos deste signo a quem serão dadas novas oportunidades indutoras de êxito, é necessário que se empenhe e demonstre acima de tudo, força de vontade e convicção. Pode ser alvo de manifestações sentimentais surpreendentes e inesperadas, retribua todos os afectos sem reservas..."
O pó enche de novo as superfícies horizontais. O bico da caneta é uma bola de caliça azulada. Voltarei ao Navio dos Espelhos à procura de um livro que traga novos signos e que possa, ainda que por instantes, dar a impressão que há coisas que valem a pena. Como é estranho que haja entendimento mesmo que as letras sejam deixadas cair ao acaso e não seja certo que haja um lugar perfeitamente esférico onde regressar.
Lino Centelha
Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.
Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.
Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.
Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.
O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.
Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.
O texto Máquina de Passar Tempo é de Rui Werneck de Capistrano
MÁQUINA DE PASSAR TEMPO
Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Walter Herrman é uma delas! Este homem, com um H muito grande, tem 25 anos e é um basquetebolista argentino. É um atleta tremendo que tem provado a vitória na derrota e a derrota na vitória. Mas contemos a sua estória...Em Julho de 2003, estava ele em La Plata no estágio quando, ao ligar para casa, descobriu que a sua namorada tinha perdido a vida num acidente. Para quem já passou por isto, sabe que a dor (e impotência) é tão grande que se amaldiçoa a vida. Transtornado, virou a sua fúria para o quarto do hotel. Voou para a capital num avião fretado, e descobre que no mesmo acidente tinham morrido também a sua irmã e a sua mãe. A notícia foi tal que Herrman ficou anestesiado, fora da realidade.O povo argentino, dado a exaltações desportivas, acarinhou e apoiou o jogador de forma a ele reagir. Num gesto de transcendência voltou à sua equipa em Espanha e foi eleito como jogador mais valioso (MVP) da liga. Na temporada seguinte trocou de equipa mas continuou a jogar a grande nível. Exactamente um ano depois da tragédia, quis o destino que jogasse a final dos Campeonatos Sul-Americanos contra o Brasil. Herrman jogou e brilhou (sendo mais uma vez MVP), 365 dias «...após a morte das três mulheres mais importantes da minha vida.». A glória chegado...Sabes, mestre, gostava que a história acabasse aqui! Mas não... Depois do jogo, já no hotel, Herrman recebeu a notícia que o seu pai tinha sofrido um ataque cardíaco, um ano depois da morte na mulher e da filha. Foi um novo teste para Herrman, que o superou ganhando a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atenas. Que ironia, mestre... Depois de um ano digno de uma tragédia grega, ele bem que merece um momento no Olimpo! E tenho a certeza que, comum sorriso nos lábios e uma lágrima nos olhos, Herrman exclamou: "Que puta de vida!"...
Levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância. Voltei a olhar o baloiço e lentamente atravessei o jardim de todas as minhas recordações. Os meus passos ressoavam no saibro solto e por entre a folhagem da velha árvore, parecia-me ver os olhos de Helena a admirarem-me.
Caro Werneck de Capistrano,
Dez mil litros/dia - Werneck
Cinco minutos depois das 6, canta a noite sem sono. E mais uma noite ! Deambulo pela casa já de madrugada , uma insónia que tome conta de min . Certamente, quando só no silêncio próprio da noite , inconscientemente acabamos por pensar , e pensar , e pensar ...com ou sem sentido , o que gostaríamos de ter feito, e deixamo-nos cair no esquecimento da hora. É nestas alturas que sentimos a vontade de tudo agarrar, e recriar ...os castelos de criança, já esmagados pelo tempo , falar àqueles que o próprio tempo fez desencontrar, reencontrar o amigo imaginário que fazia companhia quando a mãe apagava a luz do quarto. O medo do escuro deixava de existir ! A menina do lado ,de quem gostava, com quem brincava, sim...bela companheira , e depois penso !!! Poderia lhe ter dado um beijo !!! (se calhar toda a gente já fez esta pergunta !)
Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar.
Claro que desconfiava que a história estava mal contada. Habituara-me a que, tal como com o sexo, os adultos nos escondiam sempre algumas partes, suponho que com a pedagógica intenção de nos manter interessados em continuar vivos.
Entre as histórias mal contadas e a verticalidade da condição humana, a casa da infância ficou marcada no globo como o lugar em que tem que se olhar para cima para ver o céu.
É por isso que aqui volto quando necessito de alinhar de novo a bússola dos sentimentos. Nada explicável, eu sei. Apenas sensações, vibrações mentais que decorrem de comparar as memórias com os lugares, numa espécie de passatempo do tipo descubra as diferenças.
Os lugares são sempre outros. Aqui soube, entre outros, de Jesus Cristo e de D. Quixote. Não sei qual deles chegou primeiro. Não sei quem é o real que se tornou ficção nem quem é a personagem que se tornou concreta. Que mais faz? Que é a história senão essa capacidade de tirar à ficção os direitos de autor? Ou talvez o contrário...
O que me lembro tem pouco a ver com o que vejo. Os saltos que dava eram muito maiores que a altura da janela. Mas a janela era muito maior. A casa encolheu, os sons agora são menos silenciosos e os cães já não ladram.
Gosto de ter este lugar vertical de regresso. O ponto de partida que torna de novo a meta. O coito onde se volta no jogo das escondidas.
Prólogo
Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.
Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.
Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.
Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.
Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.
O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.
Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.
Lino Centelha
Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.
Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.
À distância, fica a dúvida se a felicidade da memória não é um duro texto de reclusão ornamentado por Saphira na sua proverbial bonomia e poderosa coragem. Lembro-me das palavras de Sartre e já não sei se são dele ou minhas, se Saphira as trouxe a mim e me repuxou o olhar estrábico para parecer um neto de doutor que passou a infância a ler.
É mentira. Na infância eu plantei uma nespereira. Enterrei o cinto do meu pai no quintal e enchi o pátio de guerras horríveis em que ganhavam sempre os bons. Saphira ao meu lado, olhos brilhantes, tentadores, sorriso eterno, incentivador, murmúrios nos lábios como o tal anjo-da-guarda que nunca cheguei a ver.
Agora já cá não estão na casa os coelhos e as galinhas que cantavam os ovos novos. A distância do quintal também já não é imensa e a pasta da escola, quando ainda era desejada, já não tem aquele cheiro a novo que parecia definir o outono.
Há as marcas do corpo. Na dobra da perna a cicatriz de um dardo metálico do portão que servia de baloiço; ao pé do joelho o furo de um pauzinho chinês que, afiado, serviu de punhal para desbravar a floresta das traseiras; e as falhas de cabelo, dos galos, quando a cabeça absorvia os choques.
E há as outras marcas. Marcas desviadas de qualquer propósito que não o de reservar para cada momento um encontro completo com Saphira. Não havia fadas, não havia gnomos, mas havia já heróis da televisão. Dois revólveres, um chapéu negro, um lenço da mãe ao pescoço e muitos fora-de-lei para matar e prender. Ainda não sabia mas era um Cartwright de pleno direito. Transportava-me a cavalo, alinhando o passo pelas marcas negras do chão, dançando com a elegância que via nas cerimónias iniciais das touradas.
Li, em tempos, ao lado de Saphira, que os lugares e as coisas guardam, nos interstícios aparentemente vazios dos átomos, todos os acontecimentos em que intervieram e que, se prestarmos a devida atenção, eles nos devolvem essas imagens acrescidas da ternura própria de quem é eterno. Não sei se é assim porque o tempo me tornou surdo às coisas demasiado pequenas e a visão passou a deliciar-se apenas com o que reconhece.
Mas não mudou tudo: Saphira ainda anda por aí.
Ivo Cação do Zumbido
Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita a voz de um tempo que me desafiou a perecer apenas com todas as fomes saciadas.
Aí, nesse pedaço pouco atento da gratidão, estarão também soletrados os passos que dei para deixar de sentir o que quer que fosse pela verdade.
Nada de perturbante.
Pedaços e mais pedaços é tudo o que se vai conseguindo sugerir como vida.
Regresso sempre aos mesmos lugares.
É isso mesmo o regresso: regressar onde já se regressou e voltar sempre.
Repetir com o mesmo método o mesmo erro até deixar de o ser.
Que é que faz de um lugar um lugar de regresso?
Que tem esta pedra cinzenta onde me sento e descanso que me faz voltar?
Que gravidade estranha há por aqui a fazer do meu movimento um elástico vai-vem?
Não, não me submeto.
Não quero ler de novo os mesmos livros nem beber de novo a mesma água.
Agora que o tempo me trouxe para um lugar impossível do universo, em que a mesma improbabilidade se refuta com qualquer gesto de segredo e de silêncio, vou permanecer no lugar que sou porque esse lugar sou eu.
Que estranha esta geografia.
Este globo a girar indiferente aos meus sonhos e à minha respiração.
Este sopro do vento que vem com o ímpeto próprio dos assassinos e submete as vontades ao capricho do acaso.
Talvez esteja escondido no fogo que já não crepita o tal anunciado milagre de conhecer.
Era só isso que eu queria: conhecer.
Quando saltava de pedra em pedra e procurava na folhagem um novo brilho capaz de surpresa, era apenas com essa ligeira intenção de perceber o que se passava, de ter um anúncio sensível do ser.
Sentir e compreender.
Só isso: sentir e compreender.
Eu já devia estar avisada sobre a complexidade da mente artística. Não é que cada homem seja um artista ou contenha em si um artista, que as artes masculinas são assim umas coisas mais ligadas ao bricolage, coisas de encher garagens ou arrecadações com todas as inutilidades que já não cabem em casa. Mas dizia eu que devia estar avisada sobre as artes ditas nobres, uma vez que o pianista e o dançarino tinham arte inata e nem por isso deixaram intacta a minha alma apaixonada. Artifícios da vida! E se ela não é mais do que um rame-rame feito de rotinas pasmadas, de vez em quando lá cedemos à pitadinha de loucura que um artista traz e transmite ao cinzentinho dos dias.
Percorreu cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhou os livros caiados de pó de casa antiga e com visitas retardadas pelos afazeres longe demais. Em cada espaço, uma memória salta-lhe ao caminho, um sorriso empoeirado de quando era tão mais fácil sorrir. Percorreu cada espaço, cada quarto. Sentou-se nas cadeiras do costume, como se nunca tivesse partido. Respirou os cheiros, cheiros familiares e antigos, de madeira verdadeira e linhos amarelados. Percorreu cada espaço, como quem percorre de mansinho uma vida inteira.
Naquela cadeira de braços florida, ao lado da lareira, tinha-se sentado, primeiro ao colo do avô, depois ao colo do pai, depois sozinho, para ler um qualquer livro; na gaveta daquele aparador escondeu primeiro rebuçados, depois cigarros roubados dos bolsos do pai, por sob os panos dos enxovais de cada mulher que habitara a casa. Podia traçar a história da família em linhos e algodões, em rendas e chitas, em bordados minuciosos ou em simples pontos-cruz.
Olhou os corredores onde tinha perfilado soldados de chumbo e carrinhos de lata. E encontrou o sítio certo onde o pião fizera a cicatriz. Viu marcas de dedadas perto dos lambris, impressões digitais da sua longínqua infância.
Mas eram os cheiros da estante dos livros que mais apelavam aos sentidos. Eram as encadernações antigas, as folhas de papel amarelado, o cosido das páginas que se abriam sorrateiras sempre nas mesmas velhas marcas. Naqueles livros estava tudo o que alguma vez soubera ou quisera aprender, estavam as diferentes vozes que partiram, estavam os silêncios confortáveis e as zangas, estava ele.
Preciosos livros onde abrira horizontes na infância e se escondera na adolescência. Livros com mil vidas sonhadas, desejos de futuro, miragens. Livros que lhe pertenciam, da mesma forma que ele lhes pertencia a eles. Livros de palavras silenciosas que gritavam ainda uma nova leitura, que não calavam o que precisava ser dito e o que doía dizer. Livros amarelos onde estava ele ainda aprisionado nas suas palavras silêncio, no vazio dos seus silêncios, no tanto que tinha sonhado e não tinha sabido ser. Livros enrugados, como ele enrugara também.
Naquela casa onde se escondiam e empoeiravam todas as suas memórias, ficava nu perante ele. Nela, era impossível fugir aos tantos de erros, às tantas de fugas, ao desconforto da rotina. Voltou a sentar-se na velha cadeira e rodeou-se das memórias que, mais uma vez, lhe tinham conduzido os passos à casa de onde antes, muito tempo antes, quisera fugir.
E reconheceu que estava, finalmente, no momento certo para voltar a casa, para voltar aos panos amarelados das suas avós, aos papéis desprezados do seu pai, à dor da perda da sua mãe.
Pegou da estante no Les Voix du Silence, de Malraux. E pensou como a sua vida tinha sido construída em silêncios e ausências. Pensou nos filhos distantes, que não conhecia nem o conheciam a ele. Pensou na solidão que o levava a percorrer, dia após dia, o caminho até à casa quase abandonada onde só viviam os seus fantasmas. E pensou nos netos…
Talvez estivesse na hora de lhes ler histórias, de os sentar no colo e lhes mostrar como é imaginar o futuro em palavras mudas. Talvez os conseguisse trazer para longe dos seus jogos, dos seus brinquedos, da televisão. Talvez afinal ainda fosse dele a possibilidade de construir a ponte que desse vida nova àquela casa, que a voltasse a aquecer de brincadeiras e gargalhadas. Talvez os linhos servissem ainda para enfeitar mesas e os armários se abrissem para que as porcelanas voltassem a respirar. Talvez houvesse novamente música no ar. E ruído. E esperança. E poeira de sapatos pequeninos depois das brincadeiras no jardim.
Talvez fosse ainda possível tirar o pó a tudo. Tirar o pó dele mesmo. Arejar as memórias.
Então, lesto, levantou-se da cadeira que já lhe abraçava o corpo confortavelmente, e dirigiu-se à janela que abriu de par em par. Agora… bem, agora só faltava deixar a família entrar na sua casa, esperando assim conseguir deixá-los reentrar na sua vida.
Hipatia, da Voz em Fuga
Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.